Em cartas a parentes, presos citam aglomerações, e paracetamol contra covid
Em cartas escritas para parentes, presos da penitenciária 2 de Presidente Venceslau (SP) afirmam que a direção da unidade aplica medidas que colaboram para a disseminação do novo coronavírus no sistema carcerário.
Um encarcerado disse em seu bilhete que ele e outros detentos tiveram testes positivos para covid-19 e estão convivendo nas celas com outros detentos ainda não examinados. A carta teria sido endossada por outros cerca de 1.400 presos. A reportagem do UOL não identificará o autor da mensagem por segurança.
Segundo o relato obtido pelo UOL através de familiares em posse das cartas, presos diagnosticados com o novo coronavírus foram isolados, seguindo orientações de saúde, mas após duas semanas eles foram reinseridos ao convívio com a população carcerária sem novo exame para definir o fim da virose. Eles afirmam que a prisão se tornou um foco de disseminação do novo coronavírus.
A SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) afirma que as "alegações são inverídicas" (veja mais abaixo). Dados oficiais indicam que 57 detentos já contraíram o novo coronavírus e 12 morreram por complicações decorrentes da covid-19 em São Paulo. Pelo menos 14 agentes penitenciários já morreram durante a pandemia.
"Foi feito o teste de vírus no pavilhão em que eu moro, e foi testado positivo em mim e em outros dez presos também. Fiquei desesperado", lê-se na carta de quatro páginas escritas à mão.
"Eles nos colocaram separados no pavilhão 1. Eu e outros seis presos numa cela pequena. Foi horrível. Ninguém nos falava nada e o medo tomou conta de todos nós", diz o detento, se referindo ao período de quarentena.
"Às vezes sentia canseira no corpo, dor de cabeça, febre. Mas o pior é que ninguém nos falava nada. Tomávamos paracetamol apenas", continua o preso em sua carta.
"Depois de duas semanas, eles disseram que nós poderíamos voltar ao pavilhão, mas nem fizeram teste de novo. É degradante ver a situação que estamos", afirma.
Para Cecília Mello, advogada e ex-juíza federal, "a população carcerária é mais vulnerável à contaminação por coronavírus do que a população em geral. Isto porque as condições de confinamento não atendem aos padrões sanitários mínimos em circunstâncias normais", afirma.
Nos casos suspeitos entre os presos, o paciente é isolado e a Vigilância Epidemiológica local é contatada, afirma a SAP.
"Os servidores em contato com o paciente devem usar mecanismos de proteção padrão, como máscaras e luvas descartáveis. Se confirmado o diagnóstico, além de continuar seguindo os procedimentos indicados, o preso será mantido em isolamento na enfermaria durante todo o período de tratamento", lê-se no comunicado da secretaria.
Detento ligado a Marcola fica doente
A Penitenciária 2 de Presidente Venceslau abriga presos de segundo e terceiro escalação da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).
Nos últimos dias, o UOL confirmou com bases em documentos judiciais que ao menos dois presos foram internados na Santa Casa da cidade com sintomas semelhantes à covid-19.
Um dos prisioneiros é Décio Gouveia Luiz, 53 anos, o Décio Português, apontado como braço-direito de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo do PCC (Primeiro Comando da Capital).
A Pasta informou, por meio de relatório médico, que o preso vem recebendo tratamento médico adequado desde que chegou à unidade, em 28 de agosto de 2019.
Preso reclama da higienização
Em outra carta a que o UOL teve acesso, um detento afirma que durante o processo de higienização de cela os presos ficam aglomerados em um espaço reduzido. Ele diz ter sofrido de sintomas semelhantes à covid-19 e que só tomou medicação enviada pela família.
O detento afirma que teve sintomas semelhantes à covid-19 e que só tomou medicamentos enviados pela família.
"No bate-grade [verificação de celas] e higienização, eles nos colocam em celas de contenção, é a maior aglomeração. Nós aqui ficamos em três celas juntos, vários tossindo e espirrando."
A SAP declarou que as denúncias não procedem.
"Durante o processo de higienização das celas, os sentenciados ficam sob supervisão do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), enquanto o servidor, devidamente protegido com Equipamentos de Proteção Individual, faz a limpeza da cela com hipoclorito de sódio por meio de pulverização."
Ainda de acordo com a pasta "a atividade ocorre diariamente em apenas um pavilhão habitacional por vez, ou seja, os presos não entram em contato com os demais pavilhões."
Opinião de médicos
Médico infectologista do Hospital Emílio Ribas, Jean Gorinchteyn explica que, caso o preso ainda estivesse com sintomas, não deveria retornar ao convívio comum dos demais detentos, sob o risco de infectar todos os encarcerados e servidores do presídio. No entanto, aponta que a recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) tem brechas.
"Segundo recomendação da OMS, se no 11º dia dos 14 de quarentena você não tiver mais nenhum sintoma, pode sair do isolamento. É o cenário ideal? Não é o cenário ideal, mas sabemos que os testes estão caros. Se esse preso ainda tem sintomas, não deve voltar sob nenhuma hipótese. Se não tem, pode voltar, mas com os riscos sabidos", disse.
A respeito do relato do segundo preso, Gorinchteyn disse que o ideal é que o estado forneça os medicamentos aos presos.
Médico que trabalha no setor de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) em hospitais da região metropolitana de São Paulo, o clínico geral Marcos Martinez afirma que, se o relato do primeiro preso for verdadeiro, ele deveria ser submetido a um segundo exame para verificar se ainda estava infectado. "Pelo menos um exame de raio-X. O ideal seria que ele fosse submetido a um dos testes sorológicos. Se o relato corresponde à verdade, foi uma atitude muito arriscada"
ONGs criticam sistema prisional
Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, afirma que a carta revela uma realidade já denunciada por organizações da sociedade civil e membros da Defensoria Pública.
"Desde o começo da pandemia já se identificava que o sistema prisional era incapaz de oferecer condições de proteção à saúde das pessoas presas. Nós temos cobrado que a Justiça e autoridades do sistema prisional tomem providências e garantam proteção à saúde dessas pessoas e também dos profissionais que trabalham nestes locais."
Sampaio afirma que diversos detentos do sistema prisional já deveriam estar em liberdade ou cumprindo penas em regime aberto, mas não têm sido contemplados em decisões judiciais.
Para o advogado Marco Fuchs, diretor executivo do Instituto Pro Bono, o relato do preso também indica que há uma subnotificação de casos nos presídios.
"Estimo que, pelas condições precárias já conhecidas das prisões em São Paulo, haja uma subnotificação acima da média".
Resposta da SAP
A SAP afirma que segue as determinações do Centro de Contingência do Coronavírus e avalia permanentemente o direcionamento de ações para o enfrentamento do problema. Leia o complemento do comunicado:
"Medidas de higiene e distanciamento preconizados pelos órgãos de saúde foram aplicadas, foram suspensas as atividades coletivas; realizada a busca ativa para casos similares ao COVID-19; a limpeza das áreas foi intensificada; a entrada de qualquer pessoa alheia ao corpo funcional foi restringida; foi determinada a quarentena para os presos que entram no sistema prisional; realizado o monitoramento dos grupos de risco; ampliação na distribuição de produtos de higiene, álcool em gel e sabonete; distribuição de EPIs como máscaras; horários alternados no refeitório e manutenção de filas, preservando-se o distanciamento seguro entre as pessoas. A testagem em massa da população paulista foi planejada por órgãos técnicos da área de saúde e contempla os servidores do sistema prisional, bem como os custodiados, em sua segunda fase, com início previsto para os próximos dias."