"Lava Jato é cheia de meias verdades", diz ex-juiz que prendeu Pinochet
O ex-juiz espanhol Baltasar Garzón, conhecido por ter participado de julgamentos que tinham as ditaduras de Argentina e Chile como réus e que decretou a prisão de Augusto Pinochet em 1998, questiona a maneira como a Lava Jato foi comandada no Brasil e argumenta que houve uma "clara intenção política de eliminação" do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da disputa eleitoral.
Em entrevista à Agência Efe em um hotel em São Paulo, Garzón também opinou sobre a tensão vivida na Argentina a poucas semanas das eleições; fala do processo de paz na Colômbia e confirma que pretende retornar à magistratura em 2021, após cumprir o período de inabilitação ao qual foi condenado por ter ordenado escutas ilegais.
Durante a curta passagem pelo Brasil, na quinta-feira o ex-juiz da Audiência Nacional da Espanha visitará Lula na cela em que está preso na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Efe: O que pensa sobre o ex-juiz federal Sergio Moro?
Garzón: Conheci Sergio Moro em Lisboa, em um congresso contra a corrupção. Ele disse que me conhecia e que sentia admiração por mim. Como todo profissional do Direito - sou juiz e acredito que morrerei sendo, ainda que momentaneamente não possa exercer a função -, (Moro) merecia o meu respeito. O problema é quando observamos certa segmentação nas investigações.
Efe: Essa segmentação é a que foi revelada recentemente pelo site "The Intercept", do jornalista Glenn Greenwald, que divulgou supostas trocas de mensagens que comprometem a imparcialidade de Moro no processo contra Lula?
Garzón: As investigações de Moro, incompreensivelmente, sempre eram dirigidas em um mesmo sentido, então eu começava a suspeitar que algo não funcionava. O direito começou a ser usado como arma de ataque político, e isso é muito perigoso.
Efe: Essa forma de proceder invalida os resultados da Lava Jato?
Garzón: A investigação da Lava Jato é muito complexa. Tudo que envolve a Odebrecht e o impacto na América Latina é muito complexo para dizermos que "não existiu". Claro que existiu, parece que existiu, há indícios de que existiu. O problema é que nem tudo vale quando o crime se confronta com o estado de direito. Quando a investigação está cheia de armadilhas, de meias verdades, de atuações chamativas e a aparência de imparcialidade se perde, há algo que não funciona.
Efe: O que dirá a Lula quando o encontrar na prisão nesta quinta-feira?
Garzón: Darei um abraço nele e direi que estamos com ele desde o princípio. Acredito que Lula é inocente, e com isto não desqualifico todos os meus colegas juízes, mas uma grave injustiça está sendo cometida com Lula. Houve uma clara intenção política de eliminação em uma disputa eleitoral.
Efe: O que tem a dizer sobre o ataque de Bolsonaro ao pai da atual alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet?
Garzón: Senti a maior indignação. Este presidente (Jair Bolsonaro), eleito pelo voto popular, vai além dos próprios votos. Os votos não dão a ele o direito de desqualificar pessoas que sofreram tortura de um regime ditatorial, como o de Augusto Pinochet. Talvez (Bolsonaro) seja o exemplo da política tresnoitada que quer reinstaurar. É como negar os efeitos nocivos de um golpe de Estado. Nenhuma pessoa em sã consciência pode defender isto, é como se se defendesse de novo o nazismo.
Efe: A Argentina, um país que o senhor conhece muito bem, terá eleições em poucas semanas.
Garzón: Estamos em uma situação extremamente delicada, com a inflação e a pobreza aumentando. Este é o momento de voltar a retomar políticas de direitos humanos com (o candidato peronista) Alberto Fernández e (a candidata a vice-presidente pela mesma chapa) Cristina Kirchner.
Efe: Como vê os problemas da Justiça com a ex-presidente argentina?
Garzón: Os processos contra ela não tiveram consistência, cedo ou tarde isso será comprovado. O que vimos nesses anos foi uma perseguição sistemática de líderes de governos populares (na América Latina). Aconteceu com Cristina Kirchner, (o ex-presidente do Equador) Rafael Correa, Lula e os impeachments de Dilma Rousseff, Fernando Lugo (ex-presidente do Paraguai), José Manuel Zelaya (de Honduras). Não foi casualidade.
Efe: O processo de paz na Colômbia, do qual o senhor participou como assessor, balança depois da retomada da luta armada por uma parte dissidente das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)?
Garzón: Quando uma organização terrorista desaparece, costumam aparecer algumas réplicas. O desejável é que essa réplica seja neutralizada. Para isso, é preciso empoderar ainda mais as instituições criadas nos acordos de paz de Havana.
Efe: O senhor foi inabilitado pelo Tribunal Supremo espanhol por um período de 11 anos, em 2012, por ter ordenado escutas aos advogados e aos detidos pelo caso Gürtel (um escândalo de propinas envolvendo o Partido Popular espanhol). Sente arrependimento pela maneira como procedeu? Pretende voltar à magistratura?
Garzón: Atuei com toda a equanimidade e me ajustando, do meu ponto de vista, às normas do Direito. Tomei decisões na interceptação das comunicações interpretando a lei a pedido da promotoria, da polícia. Não concordo com essa sentença, destruiu a minha profissão de juiz, mas faço parte do sistema jurídico e a assumo, embora a combata. Quando chegar o momento (em 2021), se me deixarem, pretendo retornar. EFE