Israel vende a Bolsonaro uma polícia repressora, diz antropólogo israelense
Bolsonaro chega amanhã a Israel para selar sua aproximação com o país do Oriente Médio. No pano de fundo dessa viagem, está uma mudança histórica de posição da diplomacia brasileira, um esforço do premiê Benjamin Netanyahu de se manter no poder e a consolidação de uma estratégia israelense para se tornar indispensável à segurança pública de potenciais aliados.
É o que explica Jeff Halper, antropólogo americano-israelense que vive há décadas em Jerusalém, onde tornou-se ativista pelos direitos palestinos. Ele é autor dos livros "War Against the People" (Guerra Contra o Povo, em tradução livre) e "An Israeli in Palestine" (Um Israelense na Palestina, também em tradução livre). Em 2006, foi indicado ao prêmio Nobel da Paz por seus esforços na "construção da igualdade entre os povos".
"O que Israel está vendendo a Bolsonaro [...] é a ideia de um Estado de segurança. Do outro lado desse quid pro quo [toma lá, dá cá], você tem os governos apoiando Israel", explica o antropólogo. Para ele, seu país "se tornou tão útil na questão de segurança", que demais Estados tendem a apoiá-lo em organismos internacionais.
Durante a viagem, Bolsonaro deve assinar acordos de cooperação nos setores de defesa, segurança pública e cibersegurança, entre outras áreas. Protestos são esperados em Jerusalém, Gaza e também em São Paulo ao longo do final de semana.
Halper também pondera quanto à possível mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, sobre a importância do apoio evangélico a Israel e sobre as eleições no país judaico, marcadas para abril. Investigado por corrupção, Netanyahu corre o risco de perder o poder dias após receber seu colega brasileiro.
UOL - Como o senhor interpreta a viagem do presidente Bolsonaro a Israel?
Jeff Halper - É parte da consolidação de regimes de direita espalhados por todo o mundo. Netanyahu está no centro disso. Israel não é o maior país do mundo, mas está no centro desse movimento ao construir esse bloco de direita. Nos Estados Unidos, há seu aliado Donald Trump. Na Europa, Israel trabalha com o chamado grupo de Visegrad, que reúne países do Leste Europeu. E você tem também como parte dessa coalizão os evangélicos.
Todos esses são grupos anti-imigrantes, antipluralismo cultural e pró-Israel, que se juntaram em um bloco muito coerente e poderoso. Eles se tornaram influentes também no Brasil. Bolsonaro tornou-se o "pedaço sulista" desse bloco.
Os dois países devem negociar essencialmente tecnologia de segurança. O que essa negociação significa para Israel e para o Brasil?
O maior interesse de Israel é manter a ocupação, e a forma como o país faz isso é servindo os líderes do poder no mundo. O que Israel está vendendo a Bolsonaro, Trump e países do Leste Europeu é a ideia de um Estado de segurança. Estados em que a segurança se tornou o interesse primordial do governo. Israel não está vendendo apenas tecnologia, mas todo um novo conceito de país.
Há um quid pro quo [uma troca]. De um lado, Israel provê essa tecnologia de repressão, destinada principalmente para as polícias, e não para os exércitos. As pessoas pensam em exércitos quando falamos de poder, porque as polícias são mais locais. Mas fato é que em todo o mundo as polícias estão sendo militarizadas e cada vez mais se tornando agentes da repressão. Você vê isso no Brasil muito fortemente.
Do outro lado desse quid pro quo, você tem os governos apoiando Israel, ainda que sejam governos críticos da ocupação [dos territórios palestinos].
O Brasil votou recentemente contra a Palestina na ONU, o que significa uma mudança expressiva na nossa tradição diplomática. Qual é o peso dessa mudança na dinâmica do Oriente Médio?
O Brasil, como a Índia, a China e vários outros países, sempre apoiou a Palestina. Isso começou a mudar quando a tecnologia de segurança israelense se tornou importante. Lula esteve aqui e visitou o parlamento israelense.
Ainda que você seja crítico, nenhum desses países vai sancionar Israel. Haverá uma votação na ONU e uma resolução para que o país pare de expandir os assentamentos [na Cisjordânia], por exemplo, mas nunca há sanções. Eles nunca dizem: "Se você não fizer isso, vamos impor um embargo ou impor um boicote para puni-lo". Então Israel não liga.
E por que isso não acontece?
Israel é um fornecedor de armamento de nível médio. O país provê armas para polícias e forças de segurança que são muito mais úteis para um governo como o Brasil, que não está em guerra com ninguém.
Vocês não precisam de caças F-53 e todos esses aparatos militares pomposos que os norte-americanos querem vender. O que vocês precisam são tecnologias de controle interno. E Israel tem essas tecnologias e o conceito de segurança que são muito mais úteis para países como o Brasil.
Se você está tentando proteger uma política impopular de ocupação, você precisa se fazer tão útil que os outros governos vão dizer: "Ok, não vamos te pressionar". Esse é o quid pro quo que mencionei. Israel se tornou tão útil na questão de segurança para os demais regimes, que eles podem criticar, mas ninguém vai sancionar Israel. E é assim que eles se safam.
Quais seriam as consequências de uma possível mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém?
Não tem nenhuma consequência na verdade, é principalmente simbólico. Mas acho que tem uma consequência que é a de cimentar a relação entre a direita e os evangélicos. Em alguns países, como nos Estados Unidos e, agora, no Brasil, o apoio evangélico se tornou mais importante para Israel do que o apoio judeu. Há seis milhões de judeus nos Estados Unidos, muitos deles são críticos de Israel. E há 35 milhões de evangélicos, que apoiam o Estado.
Acho que os evangélicos são a força política mais subestimada no mundo.
Essa aproximação entre Brasil e Israel pode enfraquecer se Netanyahu perder as eleições?
Netanyahu é uma grande fonte de recursos para Bolsonaro, por ser uma figura bastante internacional. Ele realmente tem uma visão global de um mundo à direita. Ele não está apenas confinado à Israel. Então do ponto de vista em que Netanyahu ajuda Bolsonaro a se conectar com outros líderes para obter dinheiro, apoio, armas etc, sua eleição é importante. Trump e Bolsonaro têm a perder o centro desse movimento do qual fazem parte.
No entanto, a próxima pessoa a assumir, caso Netanyahu perca as eleições, também será uma pessoa de direita. Então não haverá uma grande diferença [na relação entre os dois países]. [Benny] Gantz, o general que está na corrida, não tem uma perspectiva internacional, não é conhecido mundialmente, é mais um líder local, mas ele vai manter as boas relações com Bolsonaro e vender armas e equipamentos com prazer.
Por que o sr. apoia a solução de apenas um Estado para o conflito entre israelenses e palestinos?
Porque não há outra opção. A solução de dois Estados já era e isso é quase matemático, por causa dos assentamentos e da falta de vontade internacional para forçar Israel a sair dos territórios ocupados. E já temos hoje apenas um Estado: há apenas um governo que controla o país entre o Mediterrâneo e o rio Jordão. E esse governo não é a Autoridade Palestina. Há apenas um exército, um controle de fronteira, uma moeda e uma infraestrutura.
A questão não é sobre ser dois ou um Estado, mas sobre que tipo de Estado queremos. Nosso programa é transformar o Estado de apartheid que existe hoje, que Israel criou, em um Estado democrático com direitos iguais para todos os seus cidadãos. E, claro, isso é algo que Israel vai sempre lutar contra, porque significa deixar de ser um Estado judeu.
Como isso pode ser feito?
Como foi na África do Sul. Precisa haver uma aliança palestina com a sociedade civil internacional. Com igrejas, sindicatos, grupos políticos de todo o mundo. Já há um grande movimento pró-Palestina no mundo, inclusive no Brasil. O problema não é tanto em mobilizá-los, mas em encontrar um objetivo comum.
O que significa apoiar o BDS (campanha de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel) de dentro do país?
Não significa nada. Eu sempre digo que Israel é uma democracia muito vibrante se você é judeu. Em outras palavras, eu posso usar minha voz e ninguém vai me repreender por isso. Eu sou livre para me expressar.