O que acontece com diplomatas que desertam da Coreia do Norte
Embaixadores e seus funcionários estão a linha de frente de ideologia de autossuficiência do país, e, segundo especialistas, pagam preço bem alto por eventuais deserções.
Com o segundo encontro entre o líder norte-coreano Kim Jong-un e o presidente americano, Donald Trump - concluído sem resultado concreto ontem -, esperava-se que o país asiático estivesse, gradualmente, buscando um engajamento maior com o resto do mundo.
Nesse cenário, um tema se torna ainda mais espinhoso - o dos diplomatas de alto escalão que decidiram desertar do regime.
Não deve ser fácil. Qualquer desertor coloca automaticamente a própria vida e as daqueles que ama em perigo. Para diplomatas de Pyongyang, que desfrutam de uma vida de prestígio e poder, o risco pode ser ainda maior.
Esses homens e mulheres estão na linha de frente da ideologia do Estado norte-coreano - a "Juche", que pode ser traduzida como "autossuficiência" - para os olhos da comunidade internacional.
Seu principal papel é aumentar o capital do regime. Embaixadores e equipe são orientados a promover mundo afora o ponto de vista de Pyongyang e com frequência buscam grupos pró-Coreia do Norte onde quer que se estabeleçam.
Entre as atribuições está o monitoramento do noticiário local em busca de menções sobre a família Kim.
A Itália é palco dos mais recentes acontecimentos nesse sentido. O governo italiano expressou preocupação sobre o futuro da filha de Jo Song-gil, embaixador norte-coreano no país que desapareceu de sua residência oficial em Roma no ano passado.
Outro diplomata desertor, Thae Yong-ho, disse à imprensa que a menina, que ainda está em idade escolar, teria sido repatriada a Pyongyang.
Os piores traidores
É quase impossível verificar a veracidade das informações, mas elas sinalizam quão altos podem ser os riscos para aqueles que viram as costas ao regime norte-coreano - especialmente aqueles que fazem parte de uma elite privilegiada a ponto de serem nomeados como representantes do país no exterior.
Quanto mais alto o prestígio, maior o preço que se paga por uma eventual deserção. Uma traição desse tipo dificilmente é esquecida pelo regime de Kim Jong-un - alguns desertores que chegaram a ser membros da elite burocrática disseram ter descoberto que suas famílias foram punidas na Coreia do Norte, enviadas à prisão e, em alguns casos, feridas a bala.
Eles são embaixadores globais para a família Kim, as figuras que asseguram os interesses da dinastia diante de um contexto internacional muitas vezes hostil. É por isso que, pela lógica de Pyongyang, abandonar o país enquanto se trabalha como diplomata não pode ser tolerado - nem percebido como tolerado.
A Coreia do Norte enxerga diplomatas desertores como os piores traidores - a humilhação, nesses casos, é muito mais forte sobre a família Kim. E, ainda assim, as deserções continuam a acontecer.
Han Jin Myung, que era segundo secretário no Vietnã, disse à agência independente de notícias NK News - especializada em notícias e análises sobre a Coreia do Norte -, que decidiu abandonar o regime depois de tentar, sem sucesso, dividir com outros altos funcionários do governo o dinheiro que havia conseguido levantar vendendo alguns bens.
Os diplomatas, segundo ele, recebem baixos salários, algo em torno de US$ 400 (cerca de R$ 1,5 mil) por mês - por isso, alguns recorrem a outras atividades para complementar o rendimento.
Seus superiores o denunciaram e ele sentiu que estava em perigo. Ele disse estar seguro de que seria "severamente punido" e, por isso, decidiu fugir.
'A Coreia do Sul deveria acolher os norte-coreanos'
Ao contrário da maioria esmagadora dos norte-coreanos, diplomatas conseguem ver como outros países funcionam e como vivem seus cidadãos.
Eles experimentam outro tipo de vida, seus filhos muitas vezes passam por escolas com currículo internacional.
Essa "amostra" de como pode ser uma vida com mais liberdade pode deixá-los com gosto pelo estilo.
Apesar das sinalizações sobre o destino da filha de Jo Song-gil, as informações sobre o diplomata e sua família ainda são escassas. Eles foram vistos pela última vez em novembro - e acredita-se que estejam buscando asilo em um terceiro país.
Detalhes sobre o caso ainda são obscuros, mas cogita-se que eles estejam a caminho dos Estados Unidos.
Esses desertores de alto escalão geram uma espécie de dilema na Coreia do Sul, especialmente no momento atual, em que o país tenta estreitar as relações com o vizinho.
Aqui na Coreia do Sul, os desertores têm historicamente recebido proteção - e por uma boa razão. Yi Han-yong, sobrinho de um meio irmão de Kim Jong-un, foi morto a tiros em frente à sua casa no subúrbio de Seul em 1997 depois de publicar um livro sobre o regime da família Kim. Seus algozes nunca foram apanhados.
Thae Yong-ho, que era vice-embaixador em Londres quando desertou, em 2016, declarou a repórteres acreditar que o governo sul-coreano deveria, entretanto, ser mais proativo e que não recomendaria ao colega Jo que buscasse refúgio no país.
"A Coreia do Sul precisa mostrar que está disposta a acolher norte-coreanos", afirmou em uma coletiva de imprensa.
"Mas a situação atual não dá indicativos nesse sentido. Nem o governo da Coreia do Sul nem seus cidadãos têm expressado a intenção de socorrer Jo e sua família."
"Precisamos dizer aos cidadãos norte-coreanos que a República da Coreia (nome oficial da Coreia do Sul) é nossa pátria-mãe e que está disposta a receber qualquer norte-coreano que queira viver neste país."
As boas-vindas acaloradas, entretanto, não são garantidas no Sul. Governos conservadores têm com frequência usado os desertores para atacar a imagem da Coreia do Norte e ressaltar os abusos aos direitos humanos cometidos pelo regime.
A gestão liberal do presidente Moon Jae-in tem tentado se aproximar do Norte e sua administração ainda não tem mostrado de forma clara como conduzirá a questão dos desertores.
O Sul tem - há tempos - defendido a ideia de que todos os coreanos têm direito a liberdade política e econômica. Mas o Norte frequentemente acusa o Seul de orquestrar as defecções para fragilizar a imagem do país e humilhar o regime.
Esse não é o tipo de discussão na qual Moon quer entrar atualmente.
O Ministério de Relações Exteriores da Coreia do Norte não esconde a desaprovação em relação àqueles que resolvem falar abertamente sobre o tema, como Thae Yong-ho.
Sem citá-lo nominalmente, a pasta o descreveu como "escória humana" e se mostrou crítica em relação ao governo da Coreia do Sul por permitir que o desertor discursasse na Assembleia Nacional.
A reportagem questionou o Ministério da Unificação e o Ministério das Relações Exteriores da Coreia do Sul sobre os temores de que o país não estaria acolhendo os norte-coreanos de maneira adequada.
O porta-voz da Unificação escolheu com cuidado as palavras e afirmou que a posição oficial era a de que o país "aceitará qualquer desertor norte-coreano que queira vir para o Sul por livre e espontânea vontade".
A Coreia do Sul já fornece assistência material a refugiados norte-coreanos - um grupo que já soma 32 mil pessoas, muitas das quais chegaram ao país após uma travessia arriscada. Eles recebem auxílio para se acomodarem no país, para encontrar um lugar para morar e educação para os filhos.
O Ministério da Unificação tem se mostrado preocupado, contudo, com a maneira como as ações dos desertores são percebidas pelo Norte.
No ano passado, dias depois da primeira reunião entre o presidente Moon e Kim Jong-un, um desertor ativo politicamente estava se preparando para lançar balões para o Norte com folhetos informativos e pen-drives. Ele vinha fazendo isso nos últimos 15 anos - desta vez, entretanto, recebeu uma ligação pedindo que não seguisse em frente.
Quando o grupo decidiu manter o plano original, se viu cercado pela polícia.
Kim Myong Song, desertor que hoje trabalha como repórter em um dos maiores jornais diários da Coreia do Sul, o Chosun Ilbo, foi impedido de cobrir um evento em Panmunjom, na zona desmilitarizada da fronteira.
Desde 2013, ele escreve sobre assuntos relativos à Coreia do Norte, mas naquela ocasião, o Ministério da Unificação disse que os "procedimentos eram necessários" devido à "circunstância especial" do encontro.
"Isso me machucou", ele disse à BBC.
"Os desertores são cidadãos sul-coreanos. Nós abandonamos uma ditadura opressora e viemos à Coreia do Sul colocando toda a nossa confiança em um governo democrático. Esse governo, contudo, decidiu excluir um jornalista desertor mesmo quando a Coreia do Norte não havia se manifestado a respeito do assunto."
"Isso nos faz sentir vulneráveis e temer que o governo da Coreia do Sul possa nos renegar ou deixar de nos proteger."
Valiosa fonte de informação
Há uma série de benefícios, entretanto, em acolher desertores norte-coreanos - particularmente os que tinham conexão com os líderes do país.
Kim Jeong-bong, diretor do Instituto de Estratégia de Segurança Nacional, baseado em Seul, afirmou que, neste momento, Jo Song-gil seria uma fonte valiosa de informação.
"Através de Jo, nós podemos saber, por exemplo, sobre as razões dadas pela Coreia do Norte para sua recente estratégia diplomática, sobre que tipo de ordens o governo tem dados à elite de diplomatas na esteira das três últimas reuniões entre Norte e Sul", explicou.
"É possível que Kim Jong-un tenha dito a seus diplomatas que está tentando trabalhar com a Coreia do Sul para garantir maior apoio econômico ou que tenha falado que nunca abrirá mão do programa nuclear mesmo depois de se aproximar dos Estados Unidos."
"Sobretudo Jo (é uma fonte de informação valiosa). Tanto seu pai e quanto seu sogro são diplomatas de alto escalão. Seu sogro era chefe de cerimonial do Ministério das Relações Exteriores, o que significa que ele estava sentado ao lado de Kim Il-sung e Kim Jong-il quando eles estavam em eventos com líderes estrangeiros. É possível que, se Jo viesse à Coreia do Sul, nós conseguíssemos juntar as peças do quebra-cabeça e preencher lacunas de 70 anos de História da diplomacia norte-coreana."
Kim acredita que Jo tenha ido para os Estados Unidos - e é improvável que se saiba mais sobre o caso enquanto Washington e Seul estiverem dialogando com Pyongyang.
"É bem possível que os EUA não se manifestem sobre o assunto. Quando Chang Sung Gil, embaixador no Egito, e seu irmão Chang Sung Ho, da missão comercial da Coreia do Norte na França, recorreram ao país, também não houve pronunciamento."
"É muito provável que o caso de Jo tenha destino parecido."