Trazer vibrador na mala 'atenta à moral' e pode render multa de R$ 1.000
Resumo da notícia
- Decreto-lei antigo proíbe entrada no país de mercadorias "atentatórias à moral e aos bons costumes"
- A norma não especifica quais produtos são considerados "atentatórios", e isso fica a critério dos fiscais em aeroportos
- É raro a regra ser aplicada, mas profissionais do setor erótico já perderam vibradores por causa disso
- Produtos despertam curiosidade de fiscais, que pedem para ver os produtos
- Receita Federal diz que conceitos de moral são variáveis no tempo e não há regulamentação sobre o tema
Muitos não sabem, mas existe um decreto-lei antigo que proíbe a entrada no país de mercadorias "atentatórias à moral e aos bons costumes" na bagagem dos viajantes que voltam do exterior. Isso pode incluir, por exemplo, vibradores, mas eles não são mencionados explicitamente. Segundo o artigo 714 do Decreto Aduaneiro (6.759/2009), a multa para quem tentar entrar no Brasil com produtos do tipo é de R$ 1.000.
Além de estar no regulamento, a restrição também aparece no Guia do Viajante da Receita Federal, órgão do governo responsável pela fiscalização aduaneira, incluindo os aeroportos.
Na prática, a regra não funciona muito bem, pois "moral" e "bons costumes" são conceitos bastante subjetivos -dependem muito da educação, religião, costumes e cultura de cada pessoa.
Fiscal define na hora o que é proibido
O decreto não é taxativo e não especifica quais produtos são considerados "atentatórios à moral e aos bons costumes". Apesar desse tipo de apreensão ser muito incomum, a restrição é legal e pode ser aplicada.
"Infelizmente, o enquadramento fica à mercê de um critério do agente aduaneiro", disse o advogado Marcelo Vianna, especialista em Direito do Turista do escritório Vianna & Oliveira Franco. Em outras palavras, classificar uma mercadoria como algo que atenta à moral ou aos bons costumes vai da interpretação do fiscal.
Ela teve o vibrador apreendido em aeroporto
Foi o que descobriu Jacqueline Ribeiro, analista de marketing da Exclusiva Sex Shop. No ano passado, ela voltava de uma viagem à Inglaterra quando foi abordada pela fiscalização do Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP).
Ela disse que sempre que viaja a outros países, seja a passeio ou a trabalho, traz na bagagem alguns produtos eróticos que são novidade no mercado internacional. Dessa vez, ela trazia um vibrador de casal, que era um objeto em forma de "U", e um vibrador de borracha em formato fálico, mas não exatamente de pênis.
Ao ver os produtos na mala, os fiscais disseram que aquela mercadoria seria apreendida por ser considerada "atentatória à moral e aos bons costumes", segundo Jacqueline. "Eles disseram que, mesmo sendo produtos para uso pessoal, como foram comprados em um sex shop seriam enquadrados nessa lei. Falaram também que uma mulher 'direita' nunca usaria aquilo", contou.
Jacqueline disse que acabou tendo de deixar as mercadorias eróticas com os fiscais sob ameaça de pagar a multa de R$ 1.000, caso insistisse em ficar com elas.
Após a publicação desta reportagem, a Receita Federal em São Paulo entrou em contato e informou, em nota, que "a Alfândega da Receita Federal no aeroporto de Guarulhos buscou informações no histórico de apreensões ocorridas no ano passado, mas não encontrou o nome da sra. Jacqueline Ribeiro, citada na reportagem, em nenhuma delas".
Disse, ainda, que "as apreensões de vibradores já registradas na Alfândega de Guarulhos ocorreram por destinação comercial", ou seja, porque eram para venda, não para uso pessoal, e que "não há notícias, na Alfândega da Receita Federal no aeroporto de Guarulhos, de apreensão de qualquer mercadoria sob fundamento legal de ser 'atentatória à moral e aos bons costumes'."
Produtos eróticos despertam curiosidade
A interpretação do que é "atentatório à moral e aos bons costumes" é tão subjetiva, que, enquanto alguns fiscais apreendem os produtos eróticos por infringirem a lei, outros ficam curiosos.
Foi o que aconteceu também com Jacqueline quando voltava de uma premiação em Las Vegas (EUA) e teve de retirar cosméticos e alguns objetos da mala, a pedido dos fiscais.
"Eu e a policial fomos até uma sala reservada onde estava outro policial. Quando tirei as coisas de dentro da mala, ele começou a se interessar e perguntar como usava. Eu dei praticamente uma palestra e tive que deixar uns produtos com ele de presente", afirmou.
Fiscais pedem para ver os objetos
Em outras situações, os fiscais dos aeroportos pedem para os viajantes mostrarem os produtos. O argumento mais comum é que os objetos parecem ser perigosos, pois têm formato de bombas, armas ou facas.
"Uma vez eu estava voltando de uma feira na Alemanha com vários produtos eróticos na mochila, e a policial pediu para eu tirar. Eu tirei apenas dois e, quando ela viu, já me pediu para colocar de volta. Ficou sem graça", disse Paulo Arêdes Matos, diretor da rede de produtos eróticos A Sós.
Apesar de ter sido questionado algumas vezes, Arêdes nunca precisou deixar seus produtos no aeroporto e disse não ver sentido algum em enquadrar essa mercadoria na regra de "atentado à moral e aos bons costumes".
"Hoje, para o próprio fiscal seria ruim me parar, porque eu tenho todo um embasamento de mercado. Ele não vai ter o que dizer, vamos ter que discutir algo cultural, de religião que é muito subjetivo", disse.
Nem sempre produtos eróticos são apreendidos
Apesar de possíveis, casos como o de Jacqueline não são tão comuns. Profissionais que trabalham no mercado erótico relatam que nunca tiveram problemas para entrar no país com seus produtos.
"Eu já viajei por feiras do mundo inteiro, carreguei produtos na minha mala muitas vezes. Nunca tive qualquer tipo de problema com relação a produto erótico. E olha que eu já estive em 29 países", afirmou Paula Aguiar, que é ex-presidente da Associação Brasileira de Empresas do Mercado Erótico e Sensual (Abeme) e está há 19 anos nesse mercado.
Alécia Rocha, consultora da rede A Sós, também disse que viaja com frequência e nunca teve problemas. "Em voos nacionais e internacionais levo sempre meus 'satisfyers' e nunca ninguém pediu para tirar da bolsa", disse.
Por que se ouve falar pouco dessa norma?
O advogado Vianna disse que não há uma legislação bem definida sobre o tema e que nunca soube de uma apreensão de mercadorias do tipo.
Além disso, segundo ele, não existe uma lista taxativa ou mesmo exemplos de produtos que se encaixariam nessa restrição, como acontece, por exemplo, com os produtos fiscalizados pelo Ministério da Agricultura, incluindo plantas e alimentos.
"Até porque 'moral e bons costumes' referem-se a regras vigentes e aceitas pela sociedade em determinada época e contexto, logo, necessariamente, tendem a se alterar para se harmonizar ao bem comum", afirmou Vianna.
O advogado Rodrigo Vieira do Amaral, da Iterreri Advogados, disse concordar que seja muito difícil um produto ser enquadrado na regra. "Você vê até esse jargão, mas é difícil definir isso. O produto é 'atentatório à moral e aos bons costumes' de quem?", disse.
Para se ter uma ideia melhor de como há pouca definição jurídica, nem mesmo a própria Receita Federal sabe explicar bem o que seria uma mercadoria "atentatória à moral e aos bons costumes".
Segundo o órgão, a base legal desse decreto está no art. 105 do Decreto-lei nº 37 de 1966 e é, portanto, muito antiga. "Esses conceitos são variáveis ao longo do tempo. Não há uma regulamentação sobre o tema", informou o órgão à reportagem do UOL.
Por que o regulamento não é alterado?
O advogado Amaral disse que, para o governo, não vale a pena mudar o regulamento. Além de exigir um movimento burocrático do poder legislativo, que teria de alterar o decreto, o trecho é interessante para reforçar outras leis.
Uma apreensão de drogas ou cigarros, por exemplo, dependendo do caso, pode ser também enquadrada no artigo da "moral e dos bons costumes".
"Normalmente, o uso dessa regra vai estar acompanhado de um elemento mais objetivo, uma ilegalidade ou alguma coisa que esteja na lista de restrições da Anvisa", disse ele.
Além do que, é melhor não definir demais o artigo. "Se o governo faz uma lista taxativa e diz exatamente o que não pode entrar, amanhã pode surgir um produto novo muito próximo daquilo que não está previsto", disse Rodrigo.
No fim das contas, os especialistas concluem que não é preciso se preocupar muito com esse trecho do decreto aduaneiro. Mas vale se lembrar sempre de não trazer produtos para comercialização e ficar atento às normas de isenção, independentemente do que esteja na bagagem.
Se a mercadoria não estiver de acordo, é preciso fazer uma declaração à Receita dizendo que está entrando no país com aqueles produtos e pagar os impostos devidos.