Moro quer banco de DNA amplo e dados de face, íris e voz de presos; entenda
Resumo da notícia
- Ministro Sergio Moro quer mudar leis para obrigar todo preso condenado por crime doloso a ter seu DNA coletado
- O projeto propõe a criação de um banco de dados biométricos, com impressão digital, face, íris e voz dos presos, inclusive dos provisórios
- O registro do DNA de presos, criado por lei em 2012, tem sua constitucionalidade discutida no Supremo Tribunal Federal
- Entidades criticam a legislação por ela forçar os presos a criarem provas contra si e por acabarem com a presunção de inocência
O ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Sergio Moro, apresentou seu projeto de lei anticrime, que propõe mudanças em 19 áreas. No campo da investigação de crimes, ele pretende ampliar o atual banco de DNA de presos, aumentando o tempo de manutenção dos perfis genéticos para até 20 anos após o cumprimento da pena, e criar um arquivo com informações biométricas deles, com impressão digital, face, íris e até voz.
Alguns desses dados poderão ser coletados ainda que os presos sejam provisórios e suas sentenças não sejam definitivas.
O registro de DNA, usado de forma restrita no Brasil, tem sua constitucionalidade questionada no STF (Supremo Tribunal Federal) por obrigar que presos produzam provas contra si e por expor dados sensíveis a respeito do cidadão.
Banco de DNA
A identificação do DNA pode ser feita a partir do sangue, saliva ou bulbo capilar. A análise desse material biológico leva a construção um perfil genético, que é guardado em um banco que usa o Sistema de Índice de DNA Combinado (Codis, na sigla em inglês), criado pelo FBI, a polícia federal norte-americana. Essa plataforma é usada em mais de 30 países.
O Codis, segundo a AGU (Advocacia Geral da União), armazena informações genéticas de criminosos condenados pela Justiça e outras obtidas de cenas de crimes, permitindo o cruzamento de informações por meio eletrônico.
Segundo Moro, há cerca de 30 mil perfis genéticos já registrados no Brasil, administrados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, ligada ao MJSP, que integração os arquivos do próprio ministério, da Polícia Federal e de alguns estados.
Atualmente, somente presos cujo crime teve violência de natureza grave contra pessoa ou foram hediondos passam por esse tipo de identificação.
Com a alteração na Lei de Execução Penal e na lei que estabeleceu o Banco Nacional de Perfil Genético, de 2012, Moro pretende ampliar o perfil dos presos que devem ter seu material genético perfilado. O projeto dele estabelece que todos os condenados por crimes dolosos, ou seja, com intenção, deverão ser submetidos à identificação do perfil genético. A amostra de DNA deverá ser extraída assim que chegarem à unidade prisional.
Na prática, amplia o banco de dados a todos que são culpados de um crime
Danilo Doneda, especialista de proteção de dados
Acesso por décadas
Outra mudança importante é no tempo que as informações ficarão guardadas. Hoje, os dados devem ser excluídos quando o crime pelo qual o sujeito foi condenado prescrever.
O texto de Moro propõe que o perfil genético seja excluído em dois casos: se houver absolvição do acusado ou após 20 anos do cumprimento da pena --nessa situação, o sujeito terá de solicitar a retirada de seus dados.
A Associação Nacional dos Peritos Criminais (APCF) comemorou a iniciativa:
Dar efetividade a esse instrumento [o banco de DNA] é essencial para aumentar a taxa de resolução de crimes, encontrar culpados e acabar com a impunidade
Briga no STF
Parece uma saída eficiente, mas a coleta de perfil genética de condenados pode ser inconstitucional. O debate no STF é sobre se a coleta de DNA força ou não condenados a constituírem prova contra si em outros casos, já que suas informações genéticas podem ser usadas em outras investigações.
Entre os que defendem a medida, estão órgãos que veem como essencial o uso de DNA para solucionar crimes. Do outro lado, estão entidades que argumentam que a medida força a autoincriminação, assume que os condenados são culpados de outros crimes e não representa um avanço científico.
A Advocacia-Geral da União (AGU) é favorável ao banco de DNA e participa da ação como amicus curiae, ou seja, não é parte da ação, mas, como tem interesse nas discussões, participa da questão:
A descoberta do DNA e o mapeamento do genoma humano sempre apresentaram relação com a identificação criminal, que, aliada a outras provas, constituem ferramentas importantes para a elucidação de crimes
Para a entidade, não procede a reclamação de que o condenado estaria produzindo provas contra si. "Primeiro, porque já haveria condenação judicial a proferir juízo de certeza sobre sua culpabilidade. Segundo, porque, com a coleta do material genético, não se estará produzindo qualquer prova, mas apenas identificando criminalmente um condenado que, diante da gravidade dos delitos cometidos, o legislador entender ser insuficiente a identificação civil."
Já o Instituição Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), que reúne mais de 4.600 especialistas em investigação criminal, é contrário à medida:
As garantias constitucionais não caracterizam meros adornos normativos, cuja aplicação pode ser afastada pela conveniência jurisdicional. Ao contrário, são regras e limitações ao poder punitivo, cujas raízes históricas parecem ser constantemente ignoradas em favor de uma idealista esperança na redução da criminalidade pelo aumento da criminalização
A Defensoria Pública da União também já manifestou ao STF opinião contrário à mudança, alegando que bancos de DNA podem ser usados para rotular criminosos pelo resto da vida:
Esses perfis genéticos são armazenados em banco de dados que podem ser usados para instruir investigações criminais (...) Parece clara a pressuposição de que os condenados por esses delitos poderão vir a cometer outros crimes. Não se pode admitir que pessoa que tenha praticado outros delitos tenha presumida a sua culpabilidade a ponto de se impor a definição de seu perfil genético para alimentar banco de dados a ser utilizado em outras investigações criminais"
Taysa Schiocchet, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), concorda. Para ela, a lei atropela prerrogativas fundamentais, como direito à privacidade, ao tentar solucionar problemas de segurança pública lançando mão de uma ferramenta questionável.
Esse apelo aos problemas da segurança pública gera quase que uma aposta romântica e ingênua no DNA como se ele tivesse essa capacidade de resolver e elucidar todos os crimes sexuais e violentos, como se fosse acabar com todos os erros judiciários
Voz, face e íris
A outra sugestão de Moro é criar um banco com dados biométrico, como impressão digital, íris, face e voz dos presidiários. A ideia é coletar essas informações até de presos provisórios.
Pega quase até a alma da pessoa. Tudo que é representativo da imagem pode estar nesse banco
Danilo Doneda
Esse arquivo poderá operar em conjunto com outros bancos de dados administrados pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciários. O governo federal gerencia grandes bases de informação, desde os mantidos pela Receita Federal até os do Sistema Único de Saúde. O projeto de Moro prevê que os registros desse banco possam ser acessados por autoridades policiais e do Ministério Público.
Para o especialista em proteção de dados, a liberação desse acesso, ainda que feita mediante autorização da Justiça, pode não ser o meio correto. Isso poderia permitir que partes do arquivo fossem baixadas. O ideal, diz ele, é que o Ministério da Justiça administre um sistema que não mostre os dados que possui, mas, apenas, cheque se uma informação biométrica pertença a alguém. Por exemplo: um agente submete a impressão digital ou os dados de face de um suspeito, e o sistema apenas informa a chance de corresponder ou não à de alguém incluído no banco.
A partir do momento em que tem acesso, eu fico com medo que terceiros tenham acesso
O viés do DNA
Segundo Doneda, os dados a serem guardados, tanto o DNA quanto os biométricos, não serão resguardados pela Lei Brasileira de Proteção de Dados, que entrará em vigor em agosto deste ano. Uma modificação feita pelo ex-presidente Michel Temer desobrigou entidades públicas de informarem a Autoridade Nacional de Proteção de Dados sempre que precisarem compartilhar dados com outros órgãos públicos ou necessitarem processar informações de outras organizações.
Em outros países, o uso de DNA ou de dados biométricos para a investigação de crimes é alvo de crítica por reforçar injustiças.
Taysa Schiocchet, professora da UFPR, explica que o Reino Unido é símbolo dessa discussão. "O dobro de perfis genéticos de negros foram armazenados nos bancos britânicos. O sistema judicial acaba fortalecendo o enviesamento, e com o DNA isso ocorre ainda mais."
Se isso ocorreu no Reino Unido, o que vai acontecer no Brasil, onde a gente sabe que já há um enviesamento em relação às pessoas que estão presas
Ela diz ainda que a eficácia do uso desses bancos não é tão alta quanto o alardeado.
A questão é que o DNA não é uma prova infalível