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Governo Bolsonaro segmenta população ao propor ensino técnico "aos pobres", aponta pesquisador

31/01/2019 14h22

A educação é uma das áreas onde o governo do presidente Jair Bolsonaro prometeu fazer reformas importantes - com foco no que ele classifica de "viés ideológico". Nessa semana, em entrevista à imprensa brasileira, o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmou que "a ideia de universidade para todos não existe" e que essas instituições deveriam ser "reservadas para uma elite intelectual". A RFI conversou com pesquisadores franceses, especialistas em educação, que ressaltaram a importância do acesso democrático ao ensino superior, mas apontaram os diversos desafios que esse ideal enfrenta nas sociedades capitalistas, com mercados de trabalho cada vez mais saturados e exigentes.

A educação é uma das áreas onde o governo do presidente Jair Bolsonaro prometeu fazer reformas importantes – com foco no que ele classifica de “viés ...

Marcos Lúcio Fernandes

Jean Hébrard é historiador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês), onde ele co-dirige o Centro de Pesquisas sobre o Brasil Colonial e Contemporâneo, e atualmente é professor convidado da universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos. Para ele, não existe igualdade em nenhum ensino superior no mundo, mas isso não deve ser impedimento para a busca de um acesso mais aberto a toda a população.

O discurso do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, em sua opinião, é apenas um reflexo de toda a retórica da equipe de Bolsonaro. “Eles tentam vender a ideia de que ‘vamos parar de prestar atenção em todos esses pobres que o governo PT deixou entrar nas universidades e nos interessaremos apenas nas classes altas’”, afirma. “O novo governo brinca com a afirmação de que gastamos o dinheiro do Brasil para trazer ao ensino superior, com as cotas, por exemplo, pessoas que nunca deveriam ter vindo.”

Isso ocorre, segundo Hébrard, dentro da lógica de funcionamento do governo Bolsonaro, que “segmenta” as pessoas. “O que é divertido é que ele fala, ao mesmo tempo, aos riquíssimos, aos pobres, à classe média e aos evangélicos – uma equação difícil de sustentar”, diz o pesquisador.

Nesse contexto, a proposta de Vélez Rodríguez de investir em cursos técnicos destinados a certas camadas da sociedade é apenas mais uma forma de reforçar o sistema de classes. “É preciso segmentar para dar a cada parte da população aquilo que ela ‘merece’, isto é, ensino técnico aos pobres, ensino superior às elites”, explica. “Mas quem são as elites do Brasil?”, questiona. “São aqueles que se reconhecem como tais. A classe média diz ‘a elite sou eu’, os altos dirigentes das igrejas evangélicas retrucam afirmando ‘não, a elite sou eu’. Essa segmentação é perigosa, porque todo mundo acredita que faz parte do discurso do governo.”

Para Marie Duru-Bellat, socióloga especialista nas questões da educação do prestigioso instituto de Ciências Políticas SciencesPo, a proposta de Ricardo Vélez Rodríguez, de separar os jovens entre os que farão cursos técnicos e os que farão ensino superior, deve ser vista com menos desconfiança. “É claro que, num primeiro momento, dizemos que isso é escandaloso, posso dizer isso também, é o politicamente correto. Mas é preciso refletir sobre valor dessas formações técnicas. Na Alemanha, por exemplo, têm menos jovens no ensino superior e os que fazem cursos técnicos são mais bem vistos nas profissões que exercem, que não perdem nada se comparadas aos trabalhos mais ‘intelectuais’”, defende.

Entretanto, segundo Jean Hébrard, essa questão passa pela problemática da desigualdade social no caso do Brasil. “Na França, é a mesma coisa. Desde que tentamos abrir o sistema superior francês aos mais pobres, àqueles que realmente precisam, as classes médias protestam e dizem ‘não, isso é nosso, apenas nosso’. A classe média que votou em Bolsonaro se sentia deixada de lado porque estava ficando difícil encontrar empregadas e porque os pobres ganhavam mais. É a mesma classe média que argumenta que as universidades pertencem apenas a ela, de maioria branca, como nos EUA”, argumenta.

“É preciso reformar a escola”

A pesquisadora Marie Duru-Bellat alerta para uma falsa promessa de futuro ligada à ideia do maior acesso à universidade. “Na França, dizemos que o ensino superior é aberto a todos que têm diploma do ensino médio, porque há o direito de estudar o que temos vontade e o acesso à cultura”, explica.

“O problema é que os jovens esperam, no final desses estudos, um trabalho. Essa é outra função da universidade. Há uma concorrência entre eles. Se 100% dos alunos de uma faixa etária entram na universidade, é óbvio que a taxa de emprego não será a mesma se eles fossem apenas 20%”, defende. “Se estivéssemos em uma sociedade onde os empregos são sorteados, como imaginavam alguns filósofos gregos, ok, todo mundo faz a formação que quiser, pelo tempo que quiser, e depois fazemos um sorteio e teremos um encanador com doutorado em física. Mas esse não é o caso.”

A solução, tanto para Jean Hébrard como para Marie Duru-Bellat, é uma reforma dos primeiros anos de ensino para permitir que todos tenham o mesmo acesso à educação desde o início e, dessa forma, escolham por conta própria a carreira que querem e não sejam vítimas do mercado de trabalho. “A chave do ensino superior é a qualidade das escolas. Se temos uma maior qualidade no ensino fundamental e médio [chamado de ‘secundário’ na França], é o superior que ganha”, afirma Hébrard.

“É hipócrita dizer, na França, que todos os diplomados do ensino médio têm direito de entrar onde eles querem no ensino superior, porque alguns não têm nenhuma chance de terem sucesso [julgando pela educação que tiveram]. Então, para propor um acesso mais justo à universidade, é preciso começar bem antes”, defende Marie Duru-Bellat.

Ideal de melhor acesso à universidade deve ser defendido

Rebecca Rogers, historiadora especialista em educação da Université Paris Descartes, ressalta os diversos problemas da universidade “aberta a todos”, mas revela que defende esse ideal. “É complicado porque tem o custo econômico, o Estado tem que pagar os professores. Venho dos EUA, onde os estudos custam caro, e meu coração bate do lado francês”, diz. “Num mundo onde somos obrigados a ter um alto nível de formação, devemos assegurar um sistema aberto ao máximo de pessoas. Ainda que nossos diplomados não encontrem trabalho rapidamente, eles encontram mais facilmente do que se não tivessem feito nenhum estudo.” 

Um dos principais obstáculos do acesso universal ao ensino superior na França é o fato de que, enquanto os menos favorecidos vão às universidades, os mais ricos vão às chamadas “Grandes Escolas”, as instituições de maior prestígio e com acesso seguro ao mercado de trabalho. “Estamos num sistema de duas camadas, dividido entre as universidades, acessíveis pelo diploma do ensino médio, e as Grandes Escolas, que exigem um concurso. As Grandes Escolas oferecem, certamente, uma rede de contatos e oportunidades melhores que as universidades. Entretanto, os pesquisadores franceses que são reconhecidos no exterior vêm todos das universidades”, aponta Rebecca Rogers.

“Isso é parecido como que temos no Brasil, onde todos os bons alunos vão para o sistema público universitário, com mais financiamento e melhores professores, e os pobres vão para o privado, que na maior parte dos casos está em um estado catastrófico”, diz Jean Hébrard, que se diz a favor de uma reforma do sistema educacional francês. “Na França, eu sou pela união das Grandes Escolas e das universidades, para acabar com esse circuito paralelo. As universidades é que devem assegurar o trabalho que, hoje, as Grandes Escolas fazem.”

Apesar de todos problemas enfrentados pelo ideal da “universidade para todos” na França – anfiteatros cheios, pouca infraestrutura, desânimo entre os estudantes, ausência de perspectiva de trabalho –, Jean Hébrard permanece um grande defensor da luta pelo maior acesso ao ensino superior. “Como vemos hoje, um dos critérios políticos decisivos na crise da democracia é o nível de estudos. Quem são as pessoas mais facilmente enganadas pelo populismo? Aquelas que não fizeram ensino superior. As mesmas que votaram por Donald Trump nos EUA”, cita o pesquisador. “O fato de ter feito bons estudos universitários é um fator determinante para continuar a trabalhar e ser um cidadão. É preciso aumentar nossa capacidade de produzir um ensino superior igualitário de massa, eficiente e de boa qualidade”, conclui.  

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