Jovem morta por "tribunal do crime" era amável e geniosa, diz família
Os convidados fizeram de tudo para animar o anfitrião Wilson dos Santos Soares, de 47 anos, durante o último Réveillon, mas a ausência inesperada de sua filha mais nova o incomodava. "Eu não conseguia comemorar. Tinha algum pressentimento ruim", relembra o funcionário publico municipal.
A agonia acabou apenas duas semanas depois, quando o corpo de Raquel dos Santos Soares, de 20 anos, foi encontrado enterrado, na última terça-feira (15), em um local próximo ao Capão Redondo, na zona sul de são Paulo.
Segundo a Polícia Civil, ela foi executada após passar por dois "tribunais do crime", condenada à morte por supostamente repassar informações relativas ao tráfico de drogas a uma facção rival. Momentos antes, traficantes locais desconfiaram que ela sabia demais enquanto a julgavam por uma briga com outra moradora do Morro da Lua.
O delegado Olívio Gomes Lyra, responsável pelo caso, diz ter "provas robustas" de que a morte da jovem foi por causa desta suposta informação passada à gangue rival. Mas a família acredita ser feminicídio e cita episódios violentos que teve com o namorado John Cleber Gaigher da Silva, 24. Ele está preso suspeito de envolvimento no julgamento que decidiu pela execução de Raquel e só teria escapado da mesma pena por pertencer à gangue que condenou Raquel, segundo a investigação policial.
O relacionamento entre os dois não era aprovado pela família, mas Raquel e John Cleber tiveram duas filhas, de três e um ano de idade. A jovem assassinada era a mais nova de quatro filhos de Wilson. O primeiro contato da família com John Cleber foi há dez anos, através de Milka Ferreira Soares, de 21 anos, irmã de Raquel.
"Nós morávamos perto e eu e ele paramos para conversar coisa do dia a dia, sabe? Depois, ele e minha irmã se conheceram também e, mais tarde, se envolveram", relembra a irmã. Há quatro anos, Raquel deixou a casa da família para morar com o namorado no bairro de Vila Andrade.
Ela foi sem minha autorização. Eu tentei impedi-la, mas ela estava apaixonada e cega
Wilson dos Santos Soares, pai de Raquel, assassinada após ser julgada pelo "tribunal do crime"
Além de John Cleber, a família de Raquel não gostava de quase nenhuma das amizades que ela mantinha no Morro da Lua, local onde a família passou parte da infância da vítima. "Eram todas amigas de copo, de bar. Eu dizia: 'Presta atenção, quando você tem um dinheirinho a mais e pode gastar, pipoca gente te chamando para festa. Mas quando você está na pior, ninguém se lembra de você'", explica Milka.
"Personalidade forte de uma menina doce"
Raquel era tida pelos familiares como uma mulher de personalidade forte e era difícil seguir conselho dos outros. "Quando ela engatava alguma coisa, ela batia o pé e seguia nessa ideia até o fim", completa Milka.
Wilson diz ter criado uma menina "doce, que ia com todo mundo e chorava pouco". "Ela adorava ir ao cinema, passear. Meu pai, que morreu há uns três anos, deixou uma propriedade para a família em Monsenhor Tabosa, no interior de Ceará. Virava e mexia, eu levava meus filhos e ficávamos uns dias por lá", recorda o pai.
Milka lembra que a irmã adorava brincar de ser professora na infância, mas as duas viviam faltando às aulas na escola, mesmo que estudassem em locais diferentes e Raquel interrompeu os estudos no segundo ano do ensino médio. "A gente cabulava aula e ficava andando por aí, comendo besteira, conversando. Coisa de adolescente, sabe? A gente sempre se defendia e se dava muito bem", diz.
Agora, mais velhas, as duas se visitavam frequentemente nas folgas de Milka como operadora de caixa de um supermercado. Nesses últimos tempos, no entanto, o assunto eram os relatos de violência e ameaça que Raquel dizia sofrer de John Cleber. Milka tentava dar suporte à irmã, que se sentia com medo do que seu companheiro poderia fazer com sua família.
Wilson era outro que nunca aprovou o relacionamento da filha. "Esse cara entrou na minha casa uma vez só, quando ela foi me apresentá-lo como namorado. De cara, falei: 'Raquel, minha filha, não me traga mais esse rapaz em casa'", diz o pai.
"Sempre tinha escândalo. Já recebi ligação de vizinho me dizendo que a Raquel estava gritando e que o John Cleber estaria batendo nela. Eu mesma já o vi batendo nela mesmo quando eu estava na casa deles. Também já o vi batendo nas filhas", explica Milka. Raquel também publicava em seu Facebook fotos de hematomas e cortes que alegava terem sido cometidos pelo seu companheiro. Wilson diz que chegou a aconselhar a filha a registrar queixa na delegacia, mas não teve o pedido aceito.
Tentou vender cosméticos, mas desistiu
Há pouco mais de um ano, a jovem de 20 anos decidiu revender cosméticos para conseguir uma renda extra em casa. "O principal objetivo dela era voltar a estudar, conseguir trabalhar e dar um futuro melhor para as filhas dela. Ela ficou cerca de três meses como revendedora, mas como ela decidiu sair de casa devido às agressões e ameaças, indo para longe, ela teve de parar de vender", recorda Milka.
A irmã alega que tentou incentivar Raquel a voltar à escola, oferecendo-se para cuidar das filhas dela, mas a jovem mãe jamais respondia. Há cerca de quatro meses, Raquel decidiu sair de casa que dividia com o namorado e o pai a ajudou a pagar o aluguel de uma casa na Vila Prel. O plano seria que ela voltasse a morar com ele, mas no dia combinado, ela não apareceu. Pouco tempo depois, a família descobriu que ela tinha voltado para a Vila Andrade.
O último contato de Raquel com a família foi no começo de dezembro, quando ela disse que estava sem celular. No entanto, próximo ao dia 28, ela, as duas irmãs e o irmão tinham combinado de passarem a virada de ano na casa de Wilson.
Preocupada com a falta de informações sobre a irmã, na véspera do Ano Novo, Milka chegou a ligar para uma vizinha de Raquel, que informou que ela estava em casa, brincando com as filhas.
As duas meninas foram deixadas com os pais de John Cleber entre os dois julgamentos que Raquel passou no "tribunal do crime". Desde então, a família de Raquel não teve qualquer contato com crianças. Agora, Wilson guarda consigo os pacotes de fralda que comprou de presente para entregar à filha, mas jamais pôde entregar.