Barulho, poluição e até estupros: japoneses criticam bases dos EUA há anos
Se no Brasil uma suposta intenção do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de oferecer espaço para forças militares norte-americanas não foi muito bem recebida (o governo negou, rapidamente), no Japão o assunto também é motivo de protestos. Com uma diferença importante: os japoneses convivem com bases militares dos Estados Unidos há décadas.
São pelo menos 85 bases no país e outras instalações militares, resultado da derrota japonesa na Segunda Guerra.
Em setembro do ano passado, apenas 14% dos entrevistados em Okinawa, território que concentra metade dos 47 mil soldados americanos no Japão, apoiavam as bases americanas na província. Em 2014, o jornal Ryukyu Shimpo publicou uma pesquisa de opinião mostrando que 80% dos moradores queriam os militares americanos bem longe dali.
Autor de uma petição online contra a realocação de uma dessas bases - que seria transferida para uma área mais deserta de Okinawa -, o norte-americano descendentes de okinawanos Robert Kajiwara resumiu ao UOL o sentimento em relação à presença militar do seu país natal na terra de seus avós:
"Okinawa não precisa de uma base militar. Elas só trazem guerras e não deixa as pessoas seguras. Durante a Segunda Guerra, os japoneses colocaram bases militares em Okinawa para proteger o país. Eles sacrificaram as pessoas de Okinawa para proteger os japoneses"
Robert Kajiwara
De tempos em tempos, escândalos envolvendo soldados, ou problemas de convivência com os vizinhos militares, incluindo barulho e poluição, voltam à tona na mídia japonesa. Levantamento do jornal Guardian contou, entre 1972 e 2009, 127 casos de soldados acusados estuprar locais.
Dois episódios se tornaram emblemáticos: em 1995, dois soldados e dois marinheiros foram acusados de estuprar e matar uma estudante de 12 anos; e em 2008, um militar de 38 anos foi preso após uma garota de 14 anos ter sido estuprada.
Em sua defesa, as forças militares norte-americanas dizem que os crimes cometidos pelos seus homens são menos numerosos do que os cometidos pelos próprios japoneses, mesmo levando em conta a proporção populacional.
Presença histórica
Hoje, um quinto do território de Okinawa é tomado por bases norte-americanas. Uma delas, Futenma é uma das mais importantes e controversas.
A presença massiva das tropas em Okinawa também resgata um antigo mal-estar entre o Japão e o arquipélago tropical, que já foi uma região independente. E um plano de realocação de Futenma para outra região, que se arrasta há anos, joga mais lenha na fogueira.
O atual governador de Okinawa, Denny Tamaki, prometeu reduzir significativamente a presença da base norte-americana na região em sua campanha. Ele diz reconhecer a importância das bases para a relação entre os dois países, mas considera injusto que Okinawa receba, sozinha, um efetivo tão grande de soldados.
Para a população, a presença das bases traz a eterna sombra de guerra. Entre os mais velhos, ainda há a memória dos dias da Guerra Fria, quando Okinawa e sua posição estratégica para o exército dos EUA poderia ser um dos alvos das bombas soviéticas.
Próximo à China e à Coreia do Norte - países que constantemente trocam farpas com os EUA -- o Japão tem uma posição estratégica para as tropas norte-americanas, até hoje. O Departamento de Defesa dos EUA chama a operação japonesa de pilar da paz e da segurança no pacífico.
A mudança
Em 1996, os dois governos decidiram remover Futenma para um local mais deserto, uma baía ao norte de Okinawa chamada Henoko. Hoje, a base encontra-se ao lado Ginowan, uma cidade com mais de 90 mil habitantes, em processo de expansão.
No entanto, o projeto encontrou oposição em vários habitantes de Okinawa. Um dos principais motivos é que a construção iria impactar o ecossistema do arquipélago e afetar um conjunto de recifes.
Em 14 de dezembro de 2018 o governo japonês autorizou a construção da nova base, algo que, nas palavras do Governador Denny Tamaki "ignora os desejos da população"
"O Primeiro-ministro Shinzo Abe violou completamente a vontade do povo. O governo de Okinawa não permitiu a construção da base em Henoko, mas Abe passou por cima dessa decisão e ordenou que a construção começasse de qualquer forma", explica Kajiwara. Sua petição online pede ao governo norte-americano a interrupção da construção até a população de Okinawa manifestar sua vontade formalmente em um referendo no dia 24 de fevereiro.
A petição já alcançou o número de assinaturas necessárias para ser enviada à Casa Branca e obter uma resposta. O movimento até ganhou apoios de peso, como o de Bryan May, guitarrista da banda britânica Queen.Conflitos históricos
No passado, o arquipélago de Okinawa era uma região independente conhecida como Ryukyu. A ilha passou ao domínio japonês no século 19. Devido a sua posição estratégica, o arquipélago foi um importante entreposto comercial. Parte da influência chinesa no local contribuiu para que o povo Ryukyu desenvolvesse uma cultura de certa maneira diferente do restante do Japão.
Isso em parte pode explicar o sentimento de preconceito que muitos japoneses de Okinawa dizem sentir por parte de japoneses do restante do país. Há inclusive ideias separatistas, embora discretas, na região.
"Na minha opinião, o governo do Japão quer manter as bases em Okinawa para controlar os okinawanos. Em vez de buscar relações pacíficas e amistosas no resto da Ásia, o Japão continua seu caminho belicista e querendo dominar os seus vizinhos."