Como ex-Globo virou técnico de árbitros e aproveita profissionalismo na MLS
Há vida fora da Globo. "Eu não sei se existe vida fora da arbitragem", acrescenta o ex-comentarista Sandro Meira Ricci.
Árbitro brasileiro nas Copas do Mundo de 2014 e 2018, agora ele vive pela primeira vez — já no pós-Central do Apito — um ambiente realmente profissional da arbitragem. No papel e tudo. E nos Estados Unidos.
Há um ano e meio, Ricci é gerente de árbitros na Professional Referee Organization (PRO). A empresa é contratada pela Major League Soccer (MLS) para fornecer os árbitros das partidas do campeonato que tem Messi, Suárez e Cia.
Ele define o próprio cargo como "técnico de árbitros". Adotou o papel de instrutor e tem tentado ir além da relação protocolar corporativa para fazer a diferença junto aos 29 árbitros principais que compõem o time da liga — ano que vem, serão 30, porque é preciso acompanhar o número de clubes no campeonato.
Lá não tem a comissão de arbitragem, no formato que conhecemos na CBF. É um cenário bem diferente — não só por causa do vínculo empregatício, também no jeito que a MLS vê a arbitragem e implanta algumas peculiaridades. Na temporada atual, uma cruzada contra a cera e a perda de tempo de jogo gerou regras específicas e exclusivas na principal divisão dos Estados Unidos.
Geladeira? Nada disso. Mas, claro que, como em toda empresa, se o árbitro for muito mal, ele pode ser demitido. Só que isso, em tese, respinga em outras peças da estrutura, como no cargo em que Sandro Meira Ricci ocupa hoje.
"Aqui todos os árbitros são todos contratados, são empregados da empresa, assim como eu sou empregado. Recebem um salário anual fixo, mais as taxas de arbitragem por jogo. Aqui existe também um sindicato muito forte. Tem um acordo que estabelece todas as condições que são necessárias para a contratação e até eventual demissão de um árbitro. É um processo que é muito negociado, que é muito transparente. O objetivo, obviamente, não é demitir. E, sim, desenvolver e melhorar a arbitragem", disse Ricci ao UOL.
O que Sandro disse
Como é que foi esse processo para você chegar aí e trabalhar aí?
"Passei por um processo seletivo e acabei sendo selecionado no final. Acredito que a minha experiência prévia como árbitro participando em grandes eventos de futebol, assim como a questão de ter ficado quatro anos na TV comentando vários jogos, tanto de competições nacionais como internacionais, ajudou muito nesse processo de contratação".
Como funciona a relação entre a MLS e a empresa da arbitragem?
"A MLS é quem organiza o campeonato, ela também é responsável por contratar os profissionais da arbitragem. A PRO é responsável por selecionar e desenvolver os árbitros para disponibilizar para as competições que são organizadas pela MLS. É uma estrutura de uma empresa normal. E tem um departamento de ciências do esporte, que ajuda muito também na questão do desenvolvimento dos árbitros e no processo de recuperação de eventuais lesões ou desconfortos. Os árbitros, no final, são os nossos maiores clientes da empresa e, obviamente, o futebol. A estrutura da empresa é profissional, baseada em resultados. A gente tenta dar as melhores condições para os árbitros desenvolverem um excelente trabalho".
E aí, como é que você entra nessa relação como gerente?
"O meu trabalho é exatamente como um técnico de futebol. Infelizmente, a gente não treina diariamente. Ninguém no mundo faz treino diário, a não ser quando você está em uma competição curta. A gente se encontra no mínimo uma vez por mês durante três ou quatro dias no nosso centro, que fica em Dallas. Fazemos um treinamento mensal com os árbitros, mas a gente, além disso, dá o feedback semanal. É estabelecer essa relação de confiança e, a partir daí, identificar qualidades e algumas deficiências para a gente poder trabalhar junto. Então, a partir do momento que eu escalo para um jogo, preciso acompanhar e identificar momentos num contexto de 90 minutos, não apenas focando na decisão, mas, sim, no processo de construção da decisão. E também identificar, ouvir o árbitro, que eu acho que é algo muito importante. Porque por mais que você seja um técnico, a gente não sabe de tudo. E a gente aprende com eles da mesma forma que a gente também ensina. Os árbitros são muito transparentes e honestos. É uma relação muito produtiva. Então, eles não têm medo. Eles não têm medo de discordar, de falar dos seus sentimentos. É uma relação, de fato, profissional".
Você não quer demitir ninguém, mas como é que funciona essa questão da avaliação diante de um erro?
"A avaliação de um erro está diretamente associada à credibilidade da gestão. Por trás da avaliação de uma situação, você tem que sempre considerar que se ela for muito distante do que se espera do resultado, você perde credibilidade. Se você der para eles uma devolução que é o contrário daquilo que você tem trabalhado, você vai perder a credibilidade. Esse tipo de situação a gente tenta sempre evitar, tratando de maneira transparente. É muito importante que você mantenha essa transparência, o diálogo aberto, que eu vou chamar de muito educado, no sentido de profissionais discutirem o erro de maneira profissional e a melhora, e não necessariamente buscar erros, buscar punições, buscar soluções imediatas que, na verdade, não vão resolver".
E como o retorno é passado aos clubes?
"A gente tem essa participação muito intensa também, uma reunião semanal com representantes da liga, em que a gente discute várias situações, apontando decisões positivas e algumas decisões que a gente poderia ter tomado de maneira melhor. E mais importante: pegando da liga o feedback do que eles estão também achando a respeito da arbitragem em determinadas situações. Então, essa conexão, ela existe e é sempre muito produtiva. Não é um balcão de reclamação. Na verdade, é uma tentativa de você ajustar as decisões da arbitragem ao que o mundo do futebol espera. Então, é um cenário, para mim, ideal e é por isso que eu acho que estou tão feliz de trabalhar aqui."
Mas aí mesmo não tendo esse balcão de reclamações, existe geladeira para árbitros por aí?
"Obrigatoriamente, a gente precisa ter o mesmo número de árbitros profissionais que o número de times. Temos 29 times na MLS. Ano que vem serão 30. A mentalidade é, primeiro, que eu treine esses árbitros. Mas vamos dizer que a gente adotasse esse método de dar uma resposta à imprensa, aos clubes, e punir o s árbitros. Se você tem 30, treina e capacita para exercer a atividade, não faz sentido (geladeira). Porque o árbitro precisa do jogo para não apenas se recuperar do erro, como também para manter a confiança. O árbitro de futebol não é tão diferente de um jogador".
E se não tirar o cara do jogo...
"A minha mentalidade de técnico de árbitro não é diferente da mentalidade de um técnico de jogador. Eu não posso tirar do meu time titular um jogador porque ele errou um gol ou, eventualmente, porque ele errou um pênalti. Eu tenho que considerar como ele está treinando, qual é a capacidade mental dele se recuperar de um erro, conhecer de fato a personalidade do árbitro. Acompanhar o desenvolvimento dele, e a partir daí eu identificar qual o árbitro que eventualmente vai precisar de um jogo de menos exposição depois de um erro. Qual que vai precisar de um jogo desafiador depois de um erro. Esse eu acho que é o trabalho do gestor. E não o trabalho de simplesmente tirar o cara da escala após o erro".
Tem um aspecto psicológico nisso tudo,?
"A questão do profissionalismo é muito importante também para essa questão. Não é estabilidade financeira, porque os árbitros recebem bem aí no Brasil também. É uma questão mesmo de estabilidade emocional, de saber que o cara tem um emprego e que ele tem as obrigações e que vai ser tratado como um profissional. Eu acho que isso acaba surtindo também resultados. Além do trabalho contínuo, do feedback individual, do acompanhamento físico diário, do acompanhamento médico toda vez que o árbitro se lesiona, do seguro de saúde, do seguro de vida, de todos os benefícios de um trabalhador, além de toda essa estabilidade, existe uma questão de estabilidade emocional. O árbitro saber que ele vai ter o apoio da gestão. Não apenas para situações físicas. Qualquer dificuldade que ele tiver, mas principalmente também para situações de campo. Eu acho que acaba criando um ambiente profissional que é favorável para todo mundo".
Um aspecto mais pessoal disso que você está falando, você lembra de quando foi o seu momento mais instável aqui no Brasil diante dessa pressão que era exercida aqui?
"No Brasil é muito difícil. Muitas vezes você passa por momentos em que você questiona se vale a pena. Porque a crítica dos dirigentes e da imprensa - uma mea culpa de quando eu era comentarista - às vezes ela é muito forte. Isso acaba atingindo. Não só o árbitro, mas a pessoa, a família. Todo mundo sofre com aquilo. Tem vezes que você vê aquele sofrimento e fica a noite sem dormir. "Poxa, será que vale? Será que não vale?" A tal da instabilidade emocional. Eu sempre falo que o melhor técnico é o próprio árbitro, se ele for honesto. Então, o árbitro que tem honestidade intelectual e humildade intelectual para entender que ele não sabe tudo. Isso vale para o ser humano, de uma maneira geral. E para entender que ele tem sempre diversas formas de avaliar tudo na vida. Eu acho que quando você tem essa humildade, você consegue crescer mais rápido e se recuperar mais rápido. Isso é fundamental".
E, afinal das contas, você chegou à conclusão que vale a pena?
"Vale. Porque a minha presença aqui nos Estados Unidos não envolve só o meu trabalho. Envolve trazer minha filha, a Manuela. Agora tem também o Ângelo que está vindo aí. Envolve também a questão do trabalho da minha esposa (Fernanda Colombo, que está grávida), que trabalha com redes sociais e futebol. Então, envolve várias coisas que me fazem acreditar que de fato vale a pena. Omeu trabalho como comentarista, a oportunidade de trabalhar na principal emissora do país. Tive a sorte de viver a minha carreira de árbitro, apesar dos momentos ruins que sempre acontecem. Mas de uma maneira geral, foram muito mais momentos positivos do que negativos. Algumas conquistas pessoais e também coletivas para a arbitragem brasileira, que foram muito legais de viver. Então, quando você pega no final de tudo, com certeza eu diria que valeu a pena e sou muito grato por hoje ter a oportunidade de aprender e de também poder contribuir com a gestão da arbitragem, aqui nos Estados Unidos".
Existe, então, vida pós-central do apito? Existe vida pós-arbitragem brasileira?
"Existe. E pelo jeito, eu não sei se existe vida fora da arbitragem, né? Porque eu tô nisso aí há muito tempo. Mas a gente tenta sempre balancear isso. A arbitragem consome. Consome não só seu tempo, mas consome sua energia física, mental, emocional. Então é importante que você tenha o profissionalismo para entender que você precisa também de ter a mesma dedicação com a sua família e com o seu bem-estar, porque eu acho que isso faz com que você seja até mais produtivo".