Por que Lisca Doido é amado por tantos no país e contestado dentro do Ceará
Lisca deixa o banco de reservas, caminha pelo gramado e se dirige à torcida do Ceará atrás de um dos gols da Arena Castelão após mais uma vitória do time. Balançando os dois braços, comanda o grito de milhares de fãs do Vozão: "Saiu do hospício, tem que respeitar, Lisca Doido é Ceará". A cena se repetiu diversas vezes em 2018 e encantou torcedores cearenses e de todo o Brasil.
Na última semana, Lisca repetiu coreografia e música. Mas desta vez dentro de uma sala de aula, no curso de treinadores da CBF, na Granja Comary. O vídeo com a cena viralizou e mostrou um "aluno querido", gerando repercussão imediata nas redes sociais.
Lisca caiu nas graças da galera, fosse em Fortaleza, na Granja Comary ou em programas de entrevistas. Tanta repercussão positiva, no entanto, não encontra eco nos bastidores do futebol do Ceará. Ao mesmo tempo que encanta fãs pelo Brasil, o comandante do Vozão desagrada parte dos jogadores de seu próprio time, companheiros da comissão técnica e membros da diretoria do clube, colecionando polêmicas e desafetos.
Abafada em diversos momentos, as polêmicas ganharam holofotes na última semana. Lisca pediu a demissão do auxiliar Marcelo Rospide após dias tumultuados no vestiário cearense. O assistente assumiu o time no empate por 1 a 1 contra o Vitória, no último dia 16, e repetiria a dose contra o Guarany, no dia 20, enquanto Lisca ainda finalizava o curso de licença de treinadores da CBF. O treinador, no entanto, pediu uma passagem ao presidente do Ceará, Robinson de Castro, chegou ao estádio e ordenou que Rospide não seria o técnico naquela noite. Sem maiores explicações, determinou que Mácio Hahn comandaria o time.
Após a vitória por 3 a 0, nada de comemoração. O clima ficou tenso no vestiário do Ceará. Ao menos seis pessoas, entre jogadores, membros da comissão técnica e outros funcionários, confirmaram ao UOL Esporte que Lisca entrou na sala da comissão técnica e, aos berros, questionou membros da preparação física. "Por que passaram uma semana sem falar comigo? Quem manda aqui sou eu. Querem me derrubar? Rospide quer o meu lugar? Por que o time correu tanto? Comigo não é assim", gritava o treinador, entre xingamentos aos colegas de comissão. O clima pesou. E não foi a primeira vez.
Confusões e xingamentos desde 2018
Discussões entre Lisca, membros da comissão técnica e integrantes do departamento de futebol eram comuns e desgastavam as partes. Em novembro, na reta final do Brasileirão 2018, o treinador se desentendeu com o meia Ricardinho no vestiário da Fonte Nova, na derrota por 2 a 1 para o Bahia. Irritado com o desempenho do time, o comandante deu um tapa no quadro usado como campo, jogando a peça de um cavalete na direção do elenco e atingindo o jogador.
Sempre calmo, o atleta não aguentou mais um ataque de fúria de Lisca e levantou para responder. Companheiros e membros da comissão técnica tiveram que intervir para evitar o pior. O treinador xingava a todos em voz alta.
Meses antes, nova cena de ofensas. Incomodado com a demora para iniciar a entrevista coletiva, agrediu com palavras uma estagiária da equipe de comunicação que colocava o 'backdrop' (painel com patrocinadores). "Vai tomar no... Você é burra?", esbravejou Lisca, fazendo a menina chorar e gerando enorme constrangimento.
Em janeiro de 2019, durante uma viagem do time para um jogo fora de Fortaleza, o treinador discutiu com um dos supervisores por não gostar da sala de um hotel destinada para a preleção. "Eu não vou dar palestra numa sala assim. E se o time perder, você vai lá e explica que não teve reunião antes da partida", esbravejou o comandante do time ao supervisor, que ficou incomodado e recebeu a solidariedade de jogadores e outros membros da comissão.
Outro episódio polêmico envolveu o jovem Felipe Jonatan. Com negociação avançada para se transferir para o Santos, o lateral pediu para ficar fora da relação de uma partida do Ceará em função de já ter um acerto verbal com o clube de São Paulo - dependendo apenas de exames médicos para oficialização da negociação. Lisca não gostou da situação e discutiu com o atleta. Novamente usando um tom acima do normal, ofendeu Felipe e assustou os profissionais que assistiam à cena.
As histórias, confirmadas por jogadores e funcionários do Ceará à reportagem se repetiam e só ampliavam o desgaste. "É hora de todos saberem o que acontece aqui dentro", disse um integrante do departamento de futebol.
A insatisfação costuma sair das salas do departamento e atingir o campo. Parte dos jogadores ouvidos pela reportagem relatou não aprovar o comportamento de Lisca de ir sozinho para a torcida após os jogos vitoriosos. "Quando ganha, é ele, vai para a galera e tudo. Quando perde, somos nós. Jogador não é bobo, não gosta disso", relatou um dos insatisfeitos do elenco.
Segundo os personagens que aceitaram conversar com o UOL Esporte, o clima já não é bom desde a reta final de 2018. Ainda que a campanha no Brasileiro fosse boa, o ambiente interno não reproduzia a alegria da torcida. Ainda assim, a aprovação de Lisca junto às arquibancadas, impedia qualquer mudança.
"Não quero saber da relação dele com os outros. Relação comigo é simples: me respeita e entrega os três pontos. Está ótimo. Fomos bem no Brasileiro, somos líderes do Estadual e temos a melhor campanha da Copa do Nordeste. Pronto. Quero saber do resultado só. Não me interessa o resto", argumentou o presidente do clube, Robinson de Castro, ao ser questionado os problemas dentro do clube. Segundo apurado, o mandatário é o único que ainda aprova Lisca, mesmo diante da insatisfação geral.
Passado polêmico
As polêmicas envolvendo Lisca e seu ambiente de trabalho não chegam a ser novidades. Profissionais que trabalharam com o treinador no Grêmio, no Paraná, no Criciúma, no Náutico, no Sampaio Corrêa e no Juventude conversaram com a reportagem e relataram episódios semelhantes de desgaste.
Um deles, Matheus Costa, topou falar abertamente de quando viu o ex-companheiro tentar agredi-lo em um hotel em Belo Horizonte.
"O Lisca é isso, um cara completamente problemático. Quem trabalhou com ele sabe. Em um dia, está tranquilo. No outro, completamente agressivo. Já vi ele enfurecido e humilhando diversos companheiros. É problema com assessor, com massagista, com roupeiro, com preparador físico, com tudo. Não dá", contou o treinador que atualmente dirige o Coritiba.
"Comigo foi pior, quando eu estava no Paraná. Ele me encontrou em um momento de fúria e veio me agredir. Estávamos em Belo Horizonte, véspera da semifinal da Primeira Liga [de 2017] contra o Atlético-MG, e ele queria dar treino. A comissão inteira explicou que era melhor não fazer isso, pelo cansaço, por termos jogado com o Flamengo um dia antes. Os jogadores foram para a piscina do hotel fazer um treino regenerativo e eu fiquei no quarto analisando vídeos do adversário. Ele saiu do quarto dele, cruzou comigo e veio para cima. Queria dar treino de qualquer jeito. E começou a gritar com todos depois e xingar. Não dá mais. É um problema pessoal que ele precisa resolver. Não pode reagir e tratar as pessoas assim. Quando falou da nossa campanha na Série B, puxava todos os louros para ele. Só diminui os outros. Um cara inteligente, mas que usa isso da pior maneira. Manipula bastidores, torcida e sai por cima. Mas não é bem isso", detalhou.
Lisca não responde acusações
Procurado para comentar a saída de Rospide, as polêmicas do passado e o clima ruim nos bastidores de Ceará, Lisca não respondeu a nenhum contato do UOL Esporte. A reportagem mandou mensagens (visualizadas e não respondidas) inúmeras vezes e realizou ligações. Sem sucesso.
Distante da polêmica que causou após pedir a demissão de Marcelo Rospide, Lisca ficou no Rio de Janeiro até o final da semana, onde concluía o curso da CBF. Neste sábado, ele chega à Fortaleza para comandar o último treino antes do duelo contra o Barbalha, no domingo (24), pelo Estadual. Rejeitado por boa parte de elenco e comissão técnica, o treinador ainda conta com o respaldo presidencial para seguir à frente da equipe.