Após trauma, ela recriou parto do filho com banheira, fotógrafa e Beatles
A advogada Anna Figueiredo, 33, não romantizava o parto, mas não esperava que tudo seria tão traumático. Inspirada na história da própria avó, que teve nove filhos em casa (oito sozinha), Anna confiava que era um processo fisiológico "feito para dar certo". Ela se preparou durante a gestação, com fisioterapia pélvica, meditação, chás, acupuntura e, na reta final, óleo de prímula e massagem no períneo. Mas quando a hora chegou, complicações resultaram em uma cesárea,
Conheça os conteúdos exclusivos de Materna com acesso ilimitado.
Com cesárea e sem sorvete de morango
Com 39 semanas e no meio da pandemia, se viu diante de uma situação que levou à indução, e foi para o hospital. Não era o imaginado, mas entre uma e outra contração, tomou um banho quente que trouxe de volta a esperança de ter o parto planejado. A dor aumentava, mas Anna ainda sentia que o corpo sabia o que fazer.
Até que no meio de tudo isso, aconteceu o momento de maior medo de toda a minha vida. De repente, uma contração bem mais dolorida e, na mesma hora, meu filho sumindo do cardiotoco. Meu marido, que é médico, achou que o aparelho tinha saído do lugar e começou a tentar reposicioná-lo.Anna Figueiredo, advogada e mãe de Eduardo, 3 anos
A advogada conta que percebeu que algo estava errado só de olhar nos olhos do companheiro e da enfermeira, que foi chamar o obstetra para tentar achar o batimento de Dudu: o coração estava entre 70-80 bpm. Sofrimento fetal. Perda de líquido amniótico.
Pouco tempo depois, a gestante recebia soro fisiológico para diluir a circulação do indutor de parto no corpo. O marido segurava uma de suas mãos e a doula a outra. Eduardo viria por cesárea. O medo tomou conta, mesmo com a certeza de que era preciso, e a culpa veio sem pedir licença.
Nunca desejei tanto uma cesárea, não tenho dúvida que foi necessária. Mas foi traumático, odiei a cirurgia. Sinto que meu corpo falhou, um sentimento muito duro de ter, e não deu tempo nem de elaborar.Anna Figueiredo, advogada e mãe de Eduardo
Na sala de cirurgia, o mais importante para Anna era que o filho viesse da maneira segura. Segundo ela, é preciso reiterar que as mulheres não querem parto normal a qualquer custo, elas só querem poder parir sem serem operadas desnecessariamente.
A advogada tinha lido tudo o que podia durante as 39 semanas, escolhido uma equipe cujos partos normais ou naturais superavam 90% dos atendimentos, escrito post-its com afirmações positivas para quando a dor chegasse.
Seu marido, André, deixava sorvete de morango no congelador. "Quando imaginava meu trabalho de parto era esse o sabor que sentia", conta Anna. O pote ficou em casa, e Anna sentiu o gelado de forma diferente. "Comecei a ter um processo fisiológico de tremer muito, a ponto de não conseguirem me anestesiar. Tive um pico de adrenalina, o que afetou muito meu marido na hora que, por ser médico, sabia que esse tanto de adrenalina no corpo poderia me fazer esquecer a experiência." Anna não esqueceu.
Eduardo nasceu saudável, foi para o colo, não precisou de nenhuma intervenção, mas a recém-mãe se sentia cortada ao meio, física e emocionalmente. Houve um grande luto pela ideia de uma chegada tranquila que não aconteceu. Os dias pós-cesárea não foram nada fáceis, com dores no corpo e na alma.
"Tem algumas mães que tiram mais de letra, eu não. Tinha dificuldade de higienizar a cicatriz, não queria tocar ou ver, tinha muita dor, não conseguia subir a minha calcinha", lembra.
Anna apresentou sintomas de estresse pós-traumático, decorrente do parto, da sensação de que poderia acontecer qualquer coisa, dos minutos em que entendeu nada estava sob seu controle, e do pavor de não voltar para casa com o bebê. Os sintomas incluíam flashes de quando o coração de Dudu não era ouvido, de quando a gestante implorava ele ficar bem, e da correria da equipe ao redor. As memórias vinham acompanhadas de choro compulsivo e gagueira momentânea.
Recriando uma lembrança
As experiências de parto traumáticas, pelo motivo que for, trazem grande ruptura na psique da mulher. Todo mundo pensa que o parto é assim, traumático e ponto, e aí a gente não tem a capacidade de acolher as várias histórias que existem.Anna Figueiredo, advogada e mãe de Eduardo
Anna se acolheu, e foi acolhida. Ao perceber os sintomas que apresentava, sua doula lembrou de um conteúdo de Maíra Libertad, parteira profissional, referência nesse universo, e sugeriu algo visto na rede social de sua colega de profissão: um reencontro com o parto e o filho -da forma que o nascimento havia sido planejado e desejado. A sugestão era criar um ritual em que a mãe pudesse eliminar a correria característica de uma emergência e deixar simplesmente os sentimentos fluírem.
Uma banheira emprestada na sala de casa, baldes e baldes de água usados para enchê-la - e ocitocina natural percorrendo o corpo. Anna entrou com o bebê no colo, ambos como vieram ao mundo, e o pai acompanhou de roupa. Fotógrafa a postos, música dos Beatles tocando, post-its reescritos na parede, algumas cartas de outras mães desejando cura, ervas colocadas na água pela doula.
Fiz o que imaginei que aconteceria no pós-parto imediato. Quando ele nasceu, eu ficava perguntando repetidamente para a enfermeira: 'ele está bem?'. E no dia do encontro, na banheira quentinha, eu ficava fazendo carinho da forma como sonhava em fazer ao ver meu filho pela primeira vez.Anna Figueiredo, advogada e mãe de Eduardo
Um novo significado para toda a vivência traumática surgia ali. Tempos depois, a advogada enviou uma mensagem para Maíra, pelo Instagram, mesmo sem conhecê-la, contando como o conteúdo da parteira havia mudando a história de sua maternidade.Maíra foi convidada para a primeira festa de aniversário do Dudu pós-pandemia, aos dois anos, e se tornou amiga de Anna.
Se eu não tivesse feito o reencontro, tido esse tempo, esse respiro junto do meu filho, realmente não sei onde ou como estaria hoje.Anna Figueiredo, advogada e mãe de Eduardo
Depois da experiência, a advogada mudou seus rumos não só pessoais, como profissionais. Agora trabalha com maternidade e infância, acolhendo mulheres e estudando o direito de gestantes. Sua empresa se chama "Fenda consultoria", homenagem à cicatriz da cesariana que, mesmo não sendo desejada, trouxe o filho com saúde para seus braços.
Não que ela deixe de olhar para o que ocorreu com a dor que causou, mas a ideia é transformar essa dor em melhorias para as mães. "Demorei três meses para conseguir falar, e insisto que, se não tivesse feito um ritual para trazer essa realidade mais leve para o que aconteceu, não sei se eu não teria caído em depressão. Todo mundo comentou que melhorei depois disso", afirma.
Para a mãe de Dudu, é preciso que a sociedade fale mais sobre isso, e que mais mães possam não só receber o atendimento necessário, como o acolhimento e a oportunidade de ressignificar o que for preciso. "Entendi que a história de parto que a gente tem é essa, que ela tem seu valor, e é um valor tremendo né?".