Cenários de Monet, casa de DaVinci: que tal uma pedalar pelo Vale do Loire?
Respondi imediatamente que sim ao inesperado convite da minha amiga Catherine, que nunca havia se mostrado fã de bicicleta. Já eu pedalo como meio de transporte em São Paulo há décadas (muito antes das ciclofaixas e ciclovias) e já fiz muita trilha de terra pelo interior e algumas cicloviagens.
Hoje pedalo menos no dia a dia, mas quando fechamos o roteiro eu montei um treino para chegar tranquila na França.
Era para ser uma viagem na primavera francesa. Mas a primavera não foi avisada: fazia 12ºC quando saímos de Blois rumo a Cheverny — um trajeto de cerca de 43 km.
Idosos, facilidades e o primeiro perrengue
Era o primeiro de quatro dias pelo Vale do Loire, conhecido como a terra dos castelos. Estávamos em junho e aquele gelo não era esperado. Mas ficamos felizes porque nenhuma gota caiu: chovera toda semana anterior e pedalar na chuva é perrengue.
Compramos um pacote com uma empresa que forneceria as bicicletas e todos os acessórios, também montaria o roteiro e levaria as bagagens de um hotel para o seguinte. Nossa primeira tarefa era pegar as bicicletas e testá-las.
Catherine pediu uma bicicleta elétrica, aquela que dá uma "forcinha" na pedalada. Eu havia reservado um modelo masculino, que costuma ser sempre melhor do que as femininas. Mas eles tinham separado uma feminina para mim. Pedi para trocar, ainda assim não gostei muito: a bike estava suja e era um modelo simples e pesado.
Catherine aprovou a dela. A bicicleta elétrica ou assistida se tornou comum, tanto nas ruas das cidades quanto nas viagens. Pudera: ela permite que pessoas não tão acostumadas com bicicleta possam vencer os percursos muito mais facilmente (tanto que nas poucas subidas que tivemos, Catherine sempre me passava. No plano e na descida eu descontava...).
Combinada essa facilidade com o fato da região ser bastante plana, encontramos muitos senhores e senhoras já passados dos 70 anos confortavelmente pedalando por lá.
Outra grande facilidade do passeio contratado é que nossa bagagem seria levada de hotel para hotel. Só precisávamos nos preocupar com o que usaríamos durante o dia.
Eu já havia feito outras três viagens de bicicleta em esquema parecido — a última há um bom tempo, em 2016. Mas seria a primeira vez acompanhada por alguém que não estava acostumada a pedalar (e eu mesma, como já comentei, diminui muito meu ritmo no pedal nos últimos anos).
Será que daríamos conta? Será que nos divertiríamos? Chegamos em Blois no dia anterior ao pedal e só tivemos tempo de um passeio. Infelizmente o castelo já não estava aberto para visitação (fica para a próxima...).
Tivemos certo problema em entender o mapa e o aplicativo e a internet não funcionava totalmente. Mas viagem autoguiada é assim: eles passam as informações e nós seguimos a rota pré-determinada. Eles também avisam o que tem no caminho de interessante - no caso, muitos castelos impressionantes; — mas também há dicas práticas de restaurantes.
Agora a viagem era com a gente: só procuraríamos a empresa caso tivéssemos algum problema. E ele surgiu logo nos primeiros 10 km, quando passávamos pela floresta de Chambord. O pneu traseiro da bicicleta da minha amiga furou. Eles não haviam dado o kit de troca e em uma hora chegaram e trocaram a bicicleta.
Estávamos longe da primeira parada, não havíamos levado comida para piquenique e não havia nada por perto: só restava esperar.
Nessas horas, é preciso paciência: perrengues podem surgir, mas como vamos lidar com eles? Após a troca, ficamos mais tranquilas e voltamos à rota. Porém, todo o processo de pegar as bicicletas, a dificuldade de se entender com o aplicativo e a parada forçada nos deixou bem atrasadas: era bom nos apressarmos.
Em um bom ritmo, logo chegamos na única parada que faríamos do dia: o castelo de Chambord.
Ainda passaríamos por uma chocolateria (com direito a degustação!), mas por conta do horário, passamos batido nessa deliciosa parada.
Chegamos a Cheverny já no fim da tarde. Mas era dia claro: só escurecia, de verdade, depois das 21h30.
Beleza de cenário
Acordamos cedo, tomamos um belo café da manhã e pedalamos menos de 1 km até o castelo de Cheverny. Ainda estava tranquilo (e frio) quando chegamos.
Construído em 1624, Cheverny é conhecido como castelo do Tintin, pois foi a inspiração de Hergé para criar o castelo Moulinsart que aparece nas aventuras do célebre repórter belga.
Mas mesmo quem não for fã do herói dos quadrinhos, ficará contente com a visita: além da construção em si e de salas ricamente decoradas, o jardim é um encanto e expõe belas esculturas de Gudmar Olovson no Jardim do amor.
Saímos felizes para as nossas bicicletas vendo um sol deixando toda a paisagem mais bonita.
As lindas papoulas coloriam o campo e me sentia no famoso quadro de Monet e a vontade era seguir pedalando pelas trilhas especialmente convidativas, sempre calmas, silenciosas e nas quais cruzávamos sempre com outros ciclistas e alguns pedestres.
O nome Chaumont-sur-Loire é autoexplicativo: a pequena cidade é toda voltada ao rio, assim como o próprio castelo. Prendemos nossas bicicletas e subimos a pé uma imensa rampa até o castelo, que convida para um passeio pelo seu interior, mas principalmente por seus jardins.
Há um festival em que paisagistas são convidados, anualmente para apresentar suas ideias e há dezenas de espaços que são montadas pensando na temporada que vai do início da primavera até quase o início do inverno. Uma beleza. E uma forma do castelo apresentar novidades. E a vista do rio também é imperdível.
Chegamos no nosso hotel que se debruçava sobre o Loire, jantamos crepes e ainda deu tempo de ver o pôr-do-sol (às 22h) no caminho de volta.
'Está cansada?', perguntei à minha companheira de viagem. 'Um pouco, mas amanhã será bem tranquilo'.
Na casa de DaVinci
De fato, 20 km a percorrer em um dia inteiro é tranquilíssimo. Já tínhamos visto o castelo da cidade, então fizemos todo o percurso com celeridade. Foi nesse dia que a elétrica mostrou sua diferença na subida.
Enquanto eu punha marcha leve e fazia força, Catherine me ultrapassava alegremente. No final, uma bela vista de Amboise explicava por que as subidas são, afinal, necessárias: sem subir não há esse tipo de vista... Quem faz trilhas ou cicloviagens sabe disso: as recompensas das subidas vão muito além do orgulho de conseguir.
Neste dia não havia tantos caminhos exclusivos para bicicleta, mas é bastante tranquilo dividir o espaço com os carros, que estão acostumados e costumam respeitar bicicletas.
As duas atrações do dia estavam já em Amboise. Primeiro, o castelo Clos Lucé, simplesmente a última residência de Leonardo da Vinci e, portanto, totalmente dedicado a ele.
Vemos reproduções do quarto dele (com uma bela vista para o castelo de Amboise), seu atelier, biblioteca e escritório. Além de maquetes de suas mais variadas invenções.
Por exemplo, uma pré-bicicleta - há controvérsias se foi dele mesmo o desenho que deu origem a essa maquete. A bicicleta só seria inventada no século 19.
Há, ainda, uma bela exposição audiovisual com as obras do artista. O jardim também reproduz algumas de suas invenções e é um convite praticamente indispensável para escolas trazerem seus alunos: vimos alguns grupos por lá.
Em seguida decidimos ir ao hotel deixar tudo por lá, talvez tomar um banho e voltar para ver o castelo de Amboise. Mas nossa bagagem ainda não tinha chegado, então apenas guardamos as bicicletas e fomos a pé.
No alto, cercado por muros este castelo deve ter sido impressionante em seu apogeu. Hoje, entranhado na pequena cidade, há 20% do que foi um dia e é formando estilos diferentes (gótico e renascentista).
Mais um castelo, mas não qualquer um
Considerando apenas a pedalada este foi o dia mais gostoso da cicloviagem. Tudo bem que tivemos que voltar um pequeno trecho (de subida) e fazer o mesmo trajeto pode não ser tão interessante. Mas o trecho repetido foi curto e entramos em lugares de muita mata, muito barulho de bicho e pouca gente.
A estrada era só nossa e como já estávamos no quarto (e derradeiro) dia, o corpo já bem acostumado com a bicicleta e pedalávamos tranquilamente, conversando. Por vezes eu disparava na frente (saudades da minha bicicleta...) e esperava um pouco.
Chegamos no castelo mais diferente da nossa jornada: o Chenonceau, que atravessa o rio Cher. Imagine construir um castelo atravessando um rio em pleno século 16? Pois é...
Talvez o mais impressionante seja a galeria de 60 metros de comprimento com 18 janelas voltadas para o rio (de ambos os lados). Lá era o salão de baile em que Catarina de Médicis organizava festas nada modestas para convidados elegantíssimos. Alguns séculos depois turistas com roupas confortáveis (e alguns ainda com capacetes na cabeça) explorariam aqueles mesmos aposentos.
Visita terminada, percebi que faríamos a volta em torno do castelo. Ou seja, passaríamos exatamente pelo outro lado para voltar a Amboise. E o outro lado era um caminho de terra e lembrava as tantas trilhas que já fiz e que tanto sinto falta.
Mesmo com pneu fino e nada preparado para aquele terreno me deu tanta alegria que esqueci de ver se a Catherine estava tão animada quanto eu. Não estava. Ficou tensa e apreensiva com o caminho irregular e eu parava para esperá-la de tempos em tempos. Ou simplesmente voltava para ver se era necessário resgatá-la. Não foi e logo o terreno voltou a ficar tranquilo.
Valeu pelo gostinho de trilha e agora era seguir ao longo do rio por muitos quilômetros.
Marcava 22ºC quando voltamos em Amboise e terminamos nosso roteiro. A primavera, definitivamente, havia chegado.