'Virou a piscina do Neymar': como turismo de Instagram muda cara de Noronha
Águas cristalinas e praias paradisíacas: essa sempre foi a marca de Fernando de Noronha. Mas, nos últimos anos, o arquipélago tem ganhado novas características: tornou-se um dos principais destinos turísticos de celebridades, influenciadores digitais e endinheirados em geral —muitos deles mais interessados em cliques do que na natureza.
A tendência pode até movimentar a economia local, mas o impacto está longe de ser só positivo.
Enquanto autoridades ouvidas por Nossa afirmam que a sustentabilidade de Noronha está ameaçada, moradores locais que conversaram com a reportagem dizem que o ecoturismo no arquipélago tem perdido espaço para o "turismo ostentação".
'Manda quem tem dinheiro'
Para Maria (nome fictício), 27, que não quer ser identificada porque é funcionária pública em Noronha e teme se comprometer, "manda [no arquipélago] quem tem dinheiro".
Ela conta que seu pai, noronhense e dono de uma pequena pousada, foi impedido de construir mais dois quartos no imóvel. Enquanto isso, poderosos em geral não encontram obstáculos para empreender. A mesma lógica vale para outras situações.
A quantidade de carros está absurda. As autoridades baniram a entrada de carros a combustão em Noronha. Agora, supostamente, só pode entrar carro elétrico, mas não é bem assim. Manda aqui quem tem dinheiro.
Maria
Ela nasceu em Natal, viveu parte da infância no arquipélago, saiu da ilha para estudar e voltou em 2020, quando as mudanças ganharam força.
"Pessoas que constroem pousadas luxuosas em Noronha conseguem trazer carro, material de construção, tudo. Se eu quiser trazer uma privada, é a maior burocracia", diz Maria.
'Virou a ilha de Caras'
A hoteleira Ana Cláudia Silva, 43, nascida em Recife e moradora de Noronha há quase duas décadas, tem percepção parecida.
Ela conta que, ao longo dos últimos anos, os próprios ilhéus acabaram saindo de lá, dando lugar aos ricos e famosos que hoje frequentam o arquipélago ou têm propriedades na ilha.
Enquanto os turistas têm acesso aos melhores hotéis, bares e restaurantes, os próprios moradores enfrentam problemas estruturais, como sistemas de saúde e saneamento básico precários.
Segundo ela, muitos ilhéus arrendaram seus patrimônios e foram morar no continente para ter mais qualidade de vida com melhor custo-benefício.
Muitos globais começaram a mostrar Noronha para o mundo. O arquipélago se tornou a ilha de Caras. Os ricos tiraram os pobres da ilha. Hoje, quase não se vê moradores locais.
Ana Cláudia Silva
O fotógrafo Breno Lucio Braga, 45, que também mora em Noronha desde a juventude, acompanhou as mudanças no arquipélago ao longo dos anos. Ele conta que já vivia na ilha na década de 1990, quando as pessoas usavam orelhão para fazer ligações e a internet ainda era muito restrita no mundo todo.
À época, havia maior senso de comunidade em Noronha. Os turistas se hospedavam na casa dos próprios ilhéus e viviam uma experiência muito mais imersiva e cultural do que a oferecida hoje.
Sem celulares e redes sociais, as pessoas também se preocupavam mais em viver o momento presente do que em registrar os acontecimentos da viagem.
"Antigamente havia poucas opções de hospedagem. Você ficava na casa dos próprios moradores. Às vezes, eu chegava da praia e os caras estavam assando peixe no quintal. De repente, chegava um outro com um violão. Era muito legal. Não tinha esse lance de Instagram, WhatsApp, redes sociais", afirma Breno.
'Buraco do Neymar'
Fotogênico e exclusivo, o arquipélago virou um destino "instagramável" —as pessoas parecem valorizar mais a foto do que o próprio momento, na opinião de quem mora por lá.
E até os lugares ganharam apelidos por causa do hype. Um desses locais é o Buraco do Galego, uma piscina natural de águas cristalinas, na Praia do Cachorro, que era pouco visitada antigamente.
Hoje, está lotada de turistas que formam fila em busca de um registro —uma hora e meia debaixo de sol, segundo relatos.
O local se popularizou depois que o jogador de futebol Neymar tirou uma foto no lugar com a atriz Bruna Marquezine, com quem namorava à época.
"[O lugar] é uma piscininha, é bem pequena, e tem umas pedras que a galera usa para pular, se divertir. Agora, tem um guia que fica por lá e te cobra R$ 50 reais para tirar uma foto sua do seu celular. Se você não quiser a foto, ele fica de cara feia para você", diz Maria, que, em 27 anos, nunca tirou uma foto no Buraco do Galego.
Não estou criticando o trabalho do guia. Reconheço que é uma boa forma de fazer dinheiro. Mas, a partir do momento que você não pode usar o local para aquilo que ele deve ser usado, porque tem uma fila quilométrica de pessoas querendo tirar foto, a coisa perde o sentido. Virou um estúdio de foto ao ar livre.
Maria
O local agora é conhecido hoje como "buraco do Neymar" ou "piscina do Neymar", conta a estudante Lívia Araújo, de 22 anos, que viveu em Noronha desde criança, se mudou para o Recife para cursar odontologia e, agora, recém-formada, vai voltar a morar no arquipélago.
Para Lívia, assim como a piscina natural na Praia do Cachorro, outros locais e atrações turísticas em Noronha se distanciaram do seu verdadeiro propósito.
Um exemplo é o Forte de Nossa Senhora dos Remédios, estrutura construída no século 18 que reconstitui a história do arquipélago. Em outubro de 2023, o lugar foi fechado para sediar o casamento do bilionário Henrique Dubugras, em uma festa para 600 convidados que contou com apresentações da banda Maroon 5 e do DJ Alok.
O Forte passou por uma revitalização incrível, mas agora é usado mais para promover festas. Antigamente, as pessoas queriam conhecer a história. Hoje só se ouve: 'Vamos para a festa no Forte'.
Lívia Araújo
'Destino para torrar dinheiro'
O estudante Mateus Hamermuller, de 21 anos, que nasceu em Porto Alegre, mas vive em Noronha desde criança, diz que as mudanças no arquipélago acompanharam o público frequentador da ilha, que agora também é outro.
Antes, conta, Noronha era frequentada por amantes da natureza e aventureiros, que gostam de trilhas, mergulhos e outros passeios ecológicos. Agora, é procurada por turistas boêmios e baladeiros que gostam de luxo e ostentação.
Mateus cita alguns bares, como o Bar do Meio e o Mirante do Boldró, que são voltados para esse público.
Noronha está muito mais elitizada. Antes, você via aquelas pessoas que vinham ao arquipélago para conhecer o mar, ver as estrelas e aproveitar os atrativos naturais daqui. Hoje, muita gente enxerga a ilha como um destino turístico para torrar rios de dinheiro em rolê e cachaça, se hospedar em pousadas luxuosas e tirar fotos.
Mateus Hamermuller
'Noronha vive crise'
Segundo a geógrafa Lilian Hangae, chefe do Núcleo de Gestão Integrada do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), as autoridades registraram um aumento exponencial do número de turistas em Noronha nos últimos anos.
As áreas destinadas para ocupação habitacional também foram ampliadas. Ela explica que o plano de manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) do arquipélago sofreu algumas mudanças —em 2005, e depois em 2017—, possibilitando essa expansão.
O intuito inicial dessas mudanças estruturais, de acordo com Lilian, era solucionar a demanda por moradia dos ilhéus, mas a situação acabou saindo do controle. Em um primeiro momento, as casas foram transformadas em pequenas pousadas domiciliares. Ao longo dos anos, essas mesmas edificações viraram hotéis de luxo e bares badalados.
Isso foi possível a partir de parcerias dos próprios ilhéus com pessoas de fora, que viram em Noronha uma possibilidade de criar ou expandir seus negócios. No arquipélago, as terras não podem ser vendidas. Elas pertencem ao Estado, que passa a autorização de uso de uma determinada área a moradores locais.
"Hoje Noronha vive uma crise", afirma Lilian. "Temos de nos lembrar que a ilha tem um espaço limitado, e a área destinada a ser urbanizada já está dada. Não há para onde crescer."
O ICMBio intensificou as ações de fiscalização ambiental em Noronha nos últimos anos. Entre 2019 e outubro de 2024, o órgão registrou um total de 58 autos de infração, 18 apreensões, nove embargos, duas destruições e uma suspensão de atividades. Essas ações resultaram em cerca de R$ 6,8 milhões em multas aplicadas.
O número de multas aplicadas em 2024, até o momento, foi o maior dos últimos cinco anos. A natureza da maioria das infrações tem relação com a ampliação de construções sem autorização e o descumprimento de embargos de obras.
As consequências dessas infrações ambientais têm ameaçado a sustentabilidade de Noronha, que já chegou a enfrentar um "colapso no abastecimento" de água e de energia, de acordo com o analista ambiental Mário Douglas, do ICMBio.
Ele conta que, em épocas de seca, falta água e, em épocas de chuva, o esgoto transborda. No último período de seca, o arquipélago passou um dia com água a cada nove dias de racionamento.
A multa é o último recurso. Antes dela, vem o diálogo. Quando o combinado não é respeitado, é preciso agir para fazer as pessoas perceberem que a sustentabilidade de Noronha está ameaçada e que não seremos omissos. É uma ilha que tem um limite geográfico, então não dá para crescer indefinidamente.
Mário Douglas, analista ambiental do ICMBio
Procurada, a administração de Noronha não respondeu aos questionamentos até o fechamento da reportagem. O espaço segue aberto.