Laranja Mecânica: 'Tratamento Ludovico' é ciência ou não passa de ficção?
Uma tecnologia capaz de mudar comportamentos violentos de pessoas e, consequentemente, diminuir a população carcerária. Este é o experimento central do filme "Laranja Mecânica", dirigido por Stanley Kubrick, que completa 50 anos neste mês de dezembro. Chamado de "Tratamento Ludovico", ele forçava o indivíduo a assistir repetidamente a cenas de violência, estupro, agressão e roubo junto de drogas que causam mal-estar e "sensação de quase morte".
Meio século depois, será que a técnica —que usava capacetes cheios de sensores e engenhoca para os olhos— seria considerada hoje ciência ou ficção? Tilt foi ouvir especialistas para descobrir. E, segundo eles, o método não tinha nada de futurístico. Usava conhecimentos da psicologia para parear estímulos e condicionar o cérebro, o que já acontece naturalmente no nosso dia a dia, na publicidade, internet e nas redes sociais.
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Para refrescar a memória
No filme, baseado no livro de mesmo nome escrito por Anthony Burgess, em 1962, Alexander DeLarge (interpretado por Malcom McDowell) é um jovem líder de uma gangue. Após ser preso, Alex aceita submeter-se ao "Tratamento Ludovico".
Com camisa de força, capacete cheio de sensores para medir reações do cérebro e presilhas que mantinham os olhos bem abertos, Alex assistia às cenas que lhe remetiam ao prazer e à repulsa causados pelo efeito das drogas.
Em duas semanas, o protagonista então se tornava incapaz de tocar uma jovem nua ou cometer ação violenta.
Nem futurístico, nem ficção
Na verdade, a parafernália que dá impressão de ficção científica e tecnológica é desnecessária e o tratamento segue o princípio do reflexo condicionado (ou também conhecido como condicionamento pavloviano, descoberto no século 20 pelo fisiologista russo Ivan Petrovich Pavlov).
Pavlov percebeu que, quando condicionados, os cães salivavam antes mesmo de ver um alimento, apenas ao verem os funcionários que costumeiramente traziam os aperitivos. O pesquisador então começou a tocar uma sirene toda vez que um prato de comida era deixado próximo aos cães. O resultado? Os animais passaram a salivar só de ouvir a sirene, sem ver comida ou humanos.
É essa relação que o filme tenta reproduzir, segundo o professor. Ou seja, após o tal tratamento, o organismo de Alex passa a entender que violência sempre precede mal-estar.
Tratamentos no mundo real
Médicos recomendam, por exemplo, que pacientes que fazem quimioterapia com frequência não comam alimentos que gostem antes das sessões, porque o tratamento usualmente causa enjoo e isso pode causar uma aversão condicionada.
Por condicionamento, esse gosto pode evocar o enjoo mesmo sem a quimioterapia.
No contexto de educação sexual por punições, que também é retratado no longa, cria-se uma situação semelhante, explica o professor.
Quando se associam, na infância, elementos sexuais (imagens do corpo e ações de paquera, por exemplo) à repressão, dor e vergonha, a pessoa pode voltar a ter sentimentos de punição em outras situações em que encontra esses elementos na vida adulta.
O conceito pode ser usado ainda em terapia para reverter a aversão a aranhas (e outras fobias), ao condicionar imagens de aranhas a situações calmas com ajuda de músicas relaxantes.
As falhas do filme e do método
A área da TCC (Terapia Cognitiva Comportamental) usa o reflexo condicionado como base para a terapia, mas o processo leva anos para conseguir alguns avanços. As mudanças são muito menos radicais que as do filme, não são simples de alcançar e precisam de autorização do paciente.Essa é a grande dificuldade dos treinamentos comportamentais, além disso a pessoa precisa querer o processo, diferente do personagem no filme.
A quebra na associação violência-náusea seria esperada conforme Alex se expusesse a situações de violência e não tivesse a náusea induzida.
Esse processo é chamado de "extinção do condicionamento" —um dos pontos técnicos que mostram porque o procedimento seria ineficaz e inadequado no contexto de alta criminalidade.
As ações derivadas do tratamento causam danos emocionais e colocam em risco a saúde humana. Por isso, experimentos como estes não são feitos nem aprovados por comitês de ética.
Os seres humanos apresentam três grandes tipos de comportamentos: os "liberados", comumente chamados de "instintivos", os "operantes", como andar, falar, escrever e pensar, e os "respondentes", respostas básicas provocadas por estímulos simples, como salivação e reações de ansiedade.
Estes últimos seriam os únicos moldáveis por um tratamento do tipo. Ou seja, a tecnologia está longe de mudar o comportamento humano, mas criam associações temporárias.
É o que acontece na publicidade. Os comerciais de margarina, por exemplo, associam o produto a famílias felizes, cores calmas e música relaxante.
O mesmo efeito pode ser sentido na nossa relação com o celular. Como o prazer de pessoas que desligam o aviso sonoro do WhatsApp para aqueles grupos (ou pessoas) que insistem em postar assuntos desinteressantes ou desagradáveis.
É o chamado "sistema de recompensa. O sistema neural é um circuito de regiões cerebrais que recebem disparos de dopamina a partir de certas ações, cheiros, pensamentos etc. Nosso cérebro cria hábitos e comportamentos buscando novamente essas sensações de prazer e satisfação.
Esse é um dos mecanismos que tornam as redes sociais tão viciantes — e as empresas de tecnologia sabem disso. Em 2012, o Facebook fez um experimento psicológico com 690 mil usuários, manipulando suas emoções a partir do que aparecia para elas no feed. Se Burgess escrevesse a obra nos dias de hoje, o "Ludovico" provavelmente seria mais parecido com um aplicativo de celular do que com uma cadeira elétrica.
Fontes: Marcelo Benvenuti, psicólogo e professor; Patrícia Bado, pesquisadora de neurociência e comportamento e doutora pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
*Com reportagem de dezembro de 2021