Direito ao aborto está em risco nos EUA com Trump; população segue dividida
A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA pode restringir ainda mais ou eliminar o direito ao aborto no país, já drasticamente reduzido desde 2022 em vários estados americanos.
O republicano se vangloria de ter nomeado durante sua primeira presidência três juízes conservadores para a Suprema Corte cujos votos foram decisivos para o fim à garantia federal ao procedimento. Esta decisão histórica reverteu meio século do precedente estabelecido pelo caso Roe v. Wade e colocou nas mãos dos estados o poder de legislar sobre o tema.
Desde então, cerca de 20 estados impuseram restrições totais ou parciais ao aborto.
Americanos também foram às urnas para votar sobre o aborto legal
Além de elegerem um novo presidente e Congresso, 10 estados realizaram referendos para ouvir a população sobre o aborto nas urnas na terça (5). Sete deles aprovaram emendas às suas constituições para restaurar a possibilidade de abortar até a 24ª semana (limite em que o feto se torna capaz de sobreviver fora do útero). A Flórida, o terceiro estado mais populoso, rejeitou a proposta assim como a Dakota do Sul. No Nebraska a votação segue em apuração, mas a CNN projeta vitória da proibição para o aborto após 12 semanas. Este foi o primeiro fracasso de um questionamento direto sobre o procedimento nos EUA desde 2022.
Os defensores da emenda esperavam que a Flórida pudesse se tornar um refúgio para as mulheres no sudeste do país, já que seu território está cercada por estados restritivos na questão do aborto. Mas a medida precisava receber 60% de apoio para ser adotada e obteve apenas 57%. O limite neste estado seguirá sendo de seis semanas, quando muitas mulheres sequer sabem que estão grávidas.
Durante mais de dois anos, o direito ao aborto sempre venceu nas urnas, mesmo em estados conservadores como Kansas ou Kentucky. Quase todos os referendos realizados na terça sobre o assunto procuravam reverter restrições ou proibições adotadas desde 2022, ou consagrar o direito ao aborto em estados onde ainda é legal. Colorado, Nova York e Maryland estão nesta segunda categoria, e os referendos realizados lá foram vitoriosos.
Muitas foram forçadas a viajar para outros estados para abortar. Os médicos têm medo de intervir em casos de abortos espontâneos ou outros problemas, sob pena de serem acusados de realizar um aborto ilegal.
Mas há estados republicanos que resolveram ir na contramão das bandeiras de campanha do partido. No Arizona, em que Trump segue à frente nas apurações ainda em andamento, a população decidiu ampliar a possibilidade de abortar até a 24ª semana, o que só era permitido até então até a 15ª. Missouri também adotou o mesmo limite — e por lá, a mudança foi mais radical, já que o estado tinha uma das proibições ao aborto mais rigorosas do país, sem exceções em casos de estupro ou incesto.
Como Trump vê a questão do aborto
Durante a campanha, Trump foi cauteloso com relação à questão, já que a maioria da opinião pública era a favor do direito ao aborto. Ao mesmo tempo, ele acomodou seu discurso para manter o apoio dos evangélicos. O bilionário republicano que, em 1999, se declarou a favor do direito da mulher de escolher o aborto foi, em 2020, o primeiro presidente a participar da "Marcha pela Vida", a manifestação anual de ativistas contra o aborto.
A candidata democrata Kamala Harris afirmou durante toda a campanha que, se ganhasse a eleição, seu rival instituiria uma proibição nacional de interrupções voluntárias da gravidez (IVGs). Já Trump rebateu desde outubro que imporia seu veto se o Congresso adotasse "uma proibição federal ao aborto".
Mas, de acordo com especialistas ouvidos pela AFP, o que ele quer dizer com proibição é vago. Já a primeira-dama, Melania Trump, é a favor do direito ao aborto legal. Em seu livro "Melania", lançado em outubro nos EUA, ela escreve:
Por que alguém, além da própria mulher, deveria ter o poder de determinar o que ela faz com seu próprio corpo? O direito fundamental da mulher à liberdade individual, à sua própria vida, lhe concede a autoridade para interromper a gravidez se assim desejar.
— Melania Trump
O que Trump pode fazer em relação ao direito ao aborto?
Na prática, os defensores do direito ao aborto esperam que o primeiro alvo do novo governo seja a pílula do aborto, usada em cerca de dois terços das IVGs nos Estados Unidos.
Ao longo dos anos, a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA) dos EUA ampliou o acesso à mifepristona, a primeira das duas pílulas a serem tomadas para o aborto medicamentoso, permitindo que ela seja enviada inclusive pelo correio após uma consulta via telemedicina. Os especialistas acreditam que o segundo governo Trump poderia impedir este acesso, até mesmo nos estados onde o aborto continua legal.
O fim da entrega de pílulas abortivas pelo correio representaria não só um entrave ao aborto legal, como poderia levar a proibições ou complicações em outros procedimentos abortivos posteriormente. Protegidos por leis específicas, por exemplo, médicos de Nova York se sentem seguros a prescrever e enviar pílulas abortivas para mulheres que vivem em estados com restrições — e esta opção estaria descartada.
Outra opção seria ressuscitar uma lei federal ultrapassada adotada em 1873, a Lei Comstock, que proíbe o envio de itens "obscenos", uma categoria que engloba tanto a pornografia quanto qualquer coisa que possa ser usada para contracepção ou aborto.
O procurador-geral do governo democrata, que está deixando o cargo, declarou em 2022 que essa lei não poderia ser aplicada à mifepristona. Mas se essa lei voltar a vigorar, ela poderá culminar na proibição do envio de material usado até mesmo para abortos cirúrgicos, segundo especialistas. Isso seria uma "proibição nacional de fato" dos IVGs.
O poder de nomear os juízes da Suprema Corte também poderia permitir que Trump, que já usou essa prerrogativa durante seu primeiro mandato, continuasse a reformular a alta corte para torná-la ultraconservadora e, assim, influenciar indiretamente o direito ao aborto quando a questão for levada ao tribunal.
*Com informações da AFP e de matéria publicada em 06/11/2024.