'Saí de reunião, entrei no Uber e desmaiei', conta mãe com burnout parental
Ter sintomas como cansaço excessivo -chegando à sensação de esgotamento físico e mental-, dor de cabeça frequente, alterações no apetite, insônia, dificuldade de concentração, dores musculares, sentimentos de fracasso, insegurança, derrota ou incompetência são sinais de burnout parental.
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A arquiteta e urbanista Jaqueline Lamente, mãe do Lucca, sabe bem do que se trata. Para ela, tudo começou quando estava recém-divorciada, assumia a responsabilidade financeira da família, deixava uma pandemia para trás, e tinha a chance de ascensão na carreira que não poderia ser ignorada. Sua carreira estava decolando e sua saúde parental minguando, mas as oportunidades não esperavam, muito menos as tarefas rotineiras com um filho.
Passei por um período de não aceitar que estava colapsando, mesmo sentindo vários sintomas físicos, dor muscular, muita dor de cabeça, comecei a quebrar os dentes por conta do bruxismo! Mas fui negligenciando tudo porque eu tinha que dar conta do trabalho e da vida de mãe.Jaqueline Lamente, mãe e CEO da Nuna Educação
Fora de casa, passou por um programa de mentoria oferecido a membros de startups promissoras, foi convidada para assumir um cargo de liderança, também assumiu uma função de consultora. Dentro de casa, Jaque não só lidava com a rotina comum às mães, como com demandas de terapia, fonoaudiólogo e socialização de Lucca, que havia sido diagnosticado com transtorno cognitivo de comunicação.
"Esquecia o que ia falar, comecei a escrever tudo em um caderninho, mas as letras começaram a embaralhar. Eu abria o computador e me dava crise de angústia, vontade de chorar, de não estar mais ali. Me vi muito sozinha, porque mesmo tendo rede de apoio, a sobrecarga é muito maior para a mãe", diz Jaqueline.
Jaqueline entrou em uma reunião e tomou a decisão de tirar férias, foi como um pedido de socorro, mas seu corpo estava no limite.
Saindo da reunião eu entrei em um Uber e desmaiei. Apaguei. Como minha cabeça batia contra o vidro o motorista notou que eu não estava dormindo, parou o carro e me socorreu.Jaqueline Lamente, mãe e CEO da Nuna Educação
"Quando acordei do desmaio, decidi que não queria mais aquilo. Peguei um afastamento com o psiquiatra, e fui estudar autoconhecimento, autoliderança, propósito. E criei um negócio para ajudar as lideranças a serem o mais regenerativas possível, dado o contexto de saúde mental, em especial do burnout, e do impacto disso", diz Jaqueline.
Hoje, como CEO da Nuna, ecossistema de aprendizagem para líderes do futuro, ela busca facilitar o alinhamento entre propósito, carreira e saúde mental. "É um desejo meu de criar mecanismos para as pessoas não passarem pelo que eu passei, o burnout", explica. Segundo a empreendedora, é de extrema importância olhar para o autocuidado, estar com a terapia em dia, ter amigos por perto, rede de apoio, e um olhar especial para a própria saúde mental.
Nove entre cada dez mães sofrem burnout parental
Jaqueline não está sozinha. Nove entre dez mães brasileiras sofrem de burnout parental, de acordo com um estudo inédito realizado pela Kiddle Pass, aplicativo de atividades interativas para crianças, em parceria com a B2Mamy.
A pesquisa veio reiterar o que já é sentido pelas mães: "Elas relatam tristeza, casamento desarranjado, a não-felicidade ou no trabalho ou no cuidado com os filhos, ansiedade, solidão. Em 2015, também me senti muito sozinha, com medo, sobrecarregada, e não conseguia nomear. Uma tristeza profunda, sem saber se era boa mãe ou boa profissional", conta Dani Junco, mãe e CEO da comunidade B2Mamy.
Além do sintoma do esgotamento emocional, o burnout parental tem a ver, principalmente, com a despersonalização perante o papel de mãe no que diz respeito à nutrição e ao desenvolvimento sócio emocional da criança.Mariana Pereira, diretora do projeto e Educadora Parental na Kiddle Pass.
O termo burnout parental ainda é pouco conhecido no Brasil, geralmente o burnout se refere diretamente ao esgotamento no ambiente profissional, mas tem efeitos similares no ambiente doméstico, e se revela como uma das grandes consequências da falta de equidade de gênero no mercado de trabalho.
De acordo com o Ministério da Saúde, a síndrome de burnout envolve nervosismo, sofrimentos psicológicos e problemas físicos, como dor de barriga, cansaço excessivo e tonturas. A doença começa de forma leve, com estresse e falta de vontade de sair da cama ou de casa, que vão ficando constantes. A tendência é achar que é passageiro, mas para evitar problemas mais sérios, é essencial buscar apoio profissional assim que notar qualquer sinal dele.
Cada detalhe importa na análise do estresse
A escala utilizada na pesquisa foi a da Universidade de Ohio, que também fez um estudo semelhante em 2022, e revelou que 66% dos pais que trabalham sofrem de burnout parental, com 68% das mães e 42% dos pais afetados.
O estudo é o primeiro realizado apenas com mães e com um grande diferencial: há amostras de mulheres cis e de mulheres trans. As mães transgênero pontuam mais na escala de frequência e intensidade dos sintomas. Mariana destaca que o cenário é preocupante, mais agravante em grupos minorizados, e lembra que o Brasil tem o terceiro pior índice de saúde mental no mundo, só perdendo para África do Sul e Reino Unido.
Ao enfrentar o burnout no ambiente profissional, você se despersonaliza do trabalho, não conseguindo mais dar conta das entregas e tendo dificuldade para se realizar profissionalmente. No mundo materno, é a mesma coisa, mas as consequências afetam os filhos.
Uma em cada quatro pessoas já têm sintomas ou diagnóstico (Relatório Mundial de Saúde) de burnout. No universo materno, os números são maiores, cerca de 90% das mães que trabalham sofrem esgotamento mental. Destas, 54% já estão diagnosticadas, 17% apontam suspeita de doenças emocionais. Outro alerta: 42% delas não recebem acompanhamento terapêutico.
Das mulheres ouvidas, 85% estão exercendo atividades remuneradas variadas (como empreendedoras, autônomas, funcionárias públicas...) e, quando indagadas sobre rede de apoio, a maior parte revela que conta com suporte da família ou que não possui assistência alguma em casa.
Ainda há culpa por chegar no esgotamento
Como não poderia deixar de ser, surge a tão falada, mas pouco tratada: a culpa pela sobrecarga na conciliação de trabalho e filhos. Em média, 75% das figuras maternas chegaram a questionar a permanência no mercado de trabalho diante do adoecimento e transtornos mentais, diagnosticados em mais da metade das respondentes. Não é à toa que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a participação de mulheres sem filhos no mercado é 35% maior do que as que são mães.
De acordo com a pesquisa da B2Mamy e Kindle Pass, 68% das respondentes apontam terem sofrido impacto na carreira: seis em cada dez já foram questionadas a respeito de filhos no momento de promoção ou processo seletivo. Além disso, quatro em cada dez mulheres que trabalham em empresas revelaram que não possuem segurança psicológica junto ao seu líder e time, tendo que mentir ou esconder demandas relacionadas à maternidade.
O estudo também demonstra baixa maturidade das organizações, despreparo de liderança, políticas pouco sensíveis ao tema, benefícios com baixa adesão e funcionalidade, e programas que se limitam à licença.
E o que fazer?
Como pessoa física, é preciso estar atenta aos sinais, respeitar seus limites e pedir ajuda o mais rápido possível - para seu chefe, sua rede de apoio e, principalmente, para psicólogos ou psiquiatras;
Como empresa, líderes ou profissionais da área de talentos, é essencial entender o risco e acolher a funcionária: enquanto as engrenagens das corporações não se atualizarem, a fim de entenderem e atenderem as demandas do público feminino em suas políticas, haverá menos mulheres saudáveis e aptas a comporem os times, menos equidade de gênero e maior chance de afastamentos médicos ou turn-over (rotatividade de colaboradores).
"A cada um real que as empresas investem nas famílias, há um ROI, retorno sobre o investimento de 429%. Um ROI que não existe nenhuma outra ação. A cada um real investido na primeira infância, retorna sete dólares pra sociedade. Então a gente não tá aqui falando o que a gente acha", conclui Dani Junco.
Mariana, que trabalhou em times de Recursos Humanos por anos, reforça a importância de um plano de ação, começando pelo diálogo. "É muito importante para aquela analista de RH, que está com os índices de afastamentos e não sabe nem por onde começar. Às vezes, não requer investimento financeiro. Às vezes, basta começar com espaços de diálogos construtivos dentro das empresas".