A ideia de que o corpo da esposa pertence ao marido é a base da defesa de parte dos 50 acusados de abusar de uma mulher dopada na França, afirmou a colunista Cris Fibe no UOL News desta segunda-feira (30).
O principal réu no processo é Dominique Pelicot, marido da vítima. Ele confessou que, entre 2011 e 2020, contatou dezenas de homens na internet para estuprarem sua mulher, inconsciente sob efeito de drogas.
Vídeos encontrados no computador de Dominique mostram que em nenhum momento os outros agressores tentam estabelecer contato a vítima para garantir o consentimento dela.
A polícia fez uma ampla investigação e tá processando aí 50 homens. Pode ser que haja mais. E uma pequena parcela desses homens admite o estupro. A maior parte deles alega que havia consentimento por procuração — como se isso fosse possível — numa ideia absurda e errada de que o corpo dessa mulher pertence ao marido.
Apesar de estarmos aqui em pleno 2024, muitos homens ainda acreditam que os corpos das mulheres que se casam com eles pertencem a eles. Cris Fibe, colunista do UOL
Cris aponta que, tanto na França como no Brasil, falta uma definição legal sobre consentimento. O caso provocou a discussãoo sobre a possibilidade de alterar as leis francesas para deixar claro o que se entende por consentimento.
Cada país está mais ou menos avançado na legislação contra os crimes sexuais. No caso da França, como no Brasil, não existe na lei definição de consentimento. Então há essa discussão do que é o consentimento válido e quando ele pode ser considerado legítimo. Por exemplo, o marido não pode dispor do corpo da esposa por isso que existe estupro marital. O marido não pode fazer o que ele quiser com a esposa sem ela dizer 'sim', sem ela querer —e esse 'sim' tem que ser livre de coação, de pressão. Só que não existe isso na lei.
Na lei brasileira, por exemplo, a estupro é mediante violência ou grave ameaça. O que é violência ou grave ameaça cada legislador cada juiz vai decidir então fica realmente aberto tem um flanco na legislação, também na francesa. Cris Fibe, colunista do UOL
O que aconteceu
Réus têm entre 26 e 74 anos; 18 deles estão presos preventivamente. Os acusados têm perfis diversos. Há solteiros, casados e divorciados, com profissões como bombeiro, artesão, enfermeiro, agente penitenciário, jornalista e eletricista. "Não existe um perfil típico de um estuprador. O estuprador pode ser qualquer um", disse à AFP Véronique Le Goaziou, pesquisadora especializada em violência sexual.
Crimes aconteceram ao longo de dez anos, entre 2011 e 2020. Dominique entrava em contato com homens pelo site coco.fr — já desativado — e marcava os encontros. No dia combinado, dava um ansiolítico forte à esposa e pedia que os estupradores não a acordassem. Também os orientava a não usar perfume ou cigarro, aquecer as mãos com água quente e tirar a roupa na cozinha, para evitar que fossem esquecidas no quarto. Segundo o marido, todos tinham ciência de que Gisèle havia sido drogada sem o seu consentimento.
Suspeitos não usavam preservativo na maioria das vezes. "Por um extraordinário golpe de sorte (...), [Gisèle Pelicot] se livrou do HIV, da sífilis e da hepatite", declarou a especialista médica Anne Martinat Sainte-Beuve durante o julgamento, acrescentando que a vítima contraiu quatro infecções sexualmente transmissíveis. Nenhum dos acusados sofre de doenças psicológicas significativas.
Investigação identificou ao menos 92 estupros no período. Os crimes se intensificaram a partir de 2013, quando Dominique e Gisèle se mudaram de Paris para Mazan. Alguns dos acusados alegam que pensavam se tratar de um casal 'libertino', o que foi negado pela vítima logo no início de seu depoimento. "Nunca pratiquei (...) troca de parceiros. Gostaria de deixar claro", reforçou. "Nunca fui cúmplice, nem fingi que estava dormindo".
Gisèle só soube dos crimes em 2020, após seu marido ser preso. Dominique havia sido flagrado em um shopping center filmando clientes por baixo de suas saias. Na ocasião, os investigadores encontraram em seus computadores, HDs e pen drives quase 4.000 fotos e vídeos da vítima, visivelmente inconsciente, enquanto dezenas de estranhos a estupravam.
Ao lembrar de quando a polícia lhe mostrou algumas das imagens, em novembro de 2020, Gisèle disse: "Me trataram como uma boneca de pano. (...) O corpo está quente, não frio, mas estou morta na minha cama."
Processo é 'difícil', mas vítima não tem 'nada do que se envergonhar'. Gisèle quer fazer do julgamento um exemplo do uso de medicamentos nos estupros e, por isso, rejeitou que o processo fosse realizado a portas fechadas, como solicitado pelo Ministério Público e parte da defesa de Dominique. Inicialmente, a família havia pedido que seu sobrenome não fosse publicado, mas seus advogados autorizaram a divulgação nesta quinta-feira (5) porque "mais do que nunca, [os filhos] estão orgulhosos da mãe".
Eu estava sendo estuprada, era uma selvageria. O trauma é imenso. (...) Tivemos três filhos lindos, sete netos, pensei que éramos um casal muito unido. Até nossos amigos diziam: 'Vocês são o casal ideal'. (...) Falo por todas estas mulheres que estão sendo drogadas e não sabem disso, em nome de todas estas mulheres que talvez nunca saibam (...), para que mais mulheres não tenham que sofrer.
Gisèle Pélicot, 72, vítima de uma série de estupros na França
Em caso de violência, denuncie
Ao presenciar um episódio de agressão contra mulheres no Brasil, ligue para 190 e denuncie.
Casos de violência doméstica são, na maior parte das vezes, cometidos por parceiros ou ex-companheiros das mulheres, mas a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada em agressões cometidas por familiares.
Também é possível fazer denúncias pelo número 180 — Central de Atendimento à Mulher — e no Disque 100, que apura violações aos direitos humanos.
(Com AFP)
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