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Paulo Coelho sobre tortura na ditadura: Tempo no inferno não conta em horas

Paulo Coelho relembrou prisão na época da ditadura - Matej Divizna/Getty Images
Paulo Coelho relembrou prisão na época da ditadura Imagem: Matej Divizna/Getty Images
do UOL

Colaboração para Splash, em São Paulo

21/07/2024 18h59

Paulo Coelho falou abertamente sobre as sessões de tortura sofrida por ele durante o período da ditadura militar brasileira — o regime militar durou de 1964 a 1985.

O que aconteceu

Em um longo relato em inglês, Coelho contou que foi preso em 1974. Segundo o escritor, na ocasião agentes da ditadura invadiram seu apartamento, o levaram para uma delegacia onde foi fichado, interrogado e liberado. Entretanto, na volta para casa percebeu se tratar de uma armação, porque foi detido e preso ilegalmente pelos golpistas.

Coelho ressaltou que esse tipo de atitude era comum na época porque o regime prendia aqueles considerados inimigos. "O vizinho vê tudo isso e avisa minha família, que imediatamente entra em pânico. Todos sabiam o que o Brasil vivia naquela época, mesmo que isso não fosse noticiado nos jornais", expôs o famoso.

Paulo explicou que ao sair do prédio do Dops, pensou estar livre da prisão, mas percebeu que havia se equivocado. "Quando saio, o homem que me levou ao Dops sugere que tomemos um café juntos. Ele para um táxi e abre a porta com cuidado. Entro e peço para ir até a casa dos meus pais — eles precisam saber o que aconteceu. No caminho, o táxi é bloqueado por dois carros - um homem com uma arma na mão sai de um dos carros e me puxa para fora. Caio no chão e sinto o cano da arma na nuca. Olho para um hotel à minha frente e penso: 'Não posso morrer tão cedo'. Caio numa espécie de estado catatônico: não sinto medo, não sinto nada".

Escritor admitiu ter sentido medo de ser morto e entrar para a lista de desaparecidos, como tantas outras vítimas da ditadura. "Conheço as histórias de outras pessoas que desapareceram; Vou desaparecer e a última coisa que verei será um hotel. O homem me pega, me coloca no chão do carro e manda eu colocar um capô. O carro anda por aí por talvez meia hora. Devem estar escolhendo um lugar para me executar — mas ainda não sinto nada, aceitei meu destino".

Ele prosseguiu e contou que, após o carro parar, ele foi novamente agredido. "Sou arrastado e espancado enquanto sou empurrado pelo que parece ser um corredor. Eu grito, mas sei que ninguém está ouvindo, porque eles também estão gritando. Você está lutando contra seu país. Você vai morrer lentamente, mas vai sofrer muito primeiro. Paradoxalmente, meu instinto de sobrevivência começa a aparecer pouco a pouco. Peço para não me empurrarem, mas levo um soco nas costas e caio. Mandam eu tirar a roupa. O interrogatório começa com perguntas que não sei responder".

Conforme Coelho, os torturadores pedem a ele que delate pessoas que sequer conhece. "Eles me pedem para trair pessoas das quais nunca ouvi falar. Dizem que não quero cooperar, jogo água no chão. Vejo por baixo do capô que é uma máquina com eletrodos que depois são fixados na minha genitália. Entendo que, além dos golpes que não consigo prever (e, portanto, não consigo nem contrair meu corpo para amortecer o impacto), estou prestes a levar choques elétricos. Digo-lhes que não precisam fazer isso: confessarei tudo o que quiserem que eu confesse, assinarei tudo o que quiserem que eu assine".

As sessões de tortura continuaram nos dias subsequentes à prisão, mesmo com ele tendo dito que faria o que os torturadores pedissem. "Eles ignoram meus pedidos. Eles me abandonam. Depois de não saber quanto tempo e quantas sessões (o tempo no inferno não se conta em horas), alguém bate na porta e me mandam colocar o capuz novamente. Sou levado para um quarto pequeno, todo pintado de preto, com um ar-condicionado muito forte. Eles apagam a luz. Apenas escuridão, frio e uma sirene que toca incessantemente. Começo a enlouquecer. Tenho visões de cavalos. Bato na porta da 'geladeira' (descobri depois que era assim que chamavam), mas ninguém abre".

Paulo disse ter desmaiado na cela e que as sessões de espancamentos eram "melhores" que ficar trancado. "Eu desmaiei. Acordo e desmaio de novo e de novo, e a certa altura penso: é melhor levar uma surra do que ficar aqui dentro. Acordo e ainda estou no quarto. A luz está sempre acesa e não consigo dizer quantos dias ou noites se passaram. Eu fico lá pelo que parece uma eternidade".

Não sou mais interrogado. Confinamento solitário. Um dia, alguém joga minhas roupas no chão e me manda me vestir. Me visto e coloco meu capuz. Sou levado para um carro e jogado no porta-malas. Dirigimos pelo que parece uma eternidade, até que eles param - vou morrer agora? Eles me mandam tirar o capô e sair do porta-malas. Estou numa praça pública cheia de crianças, em algum lugar do Rio mas não sei onde.

Reencontro com os pais e abandono dos amigos. "Vou para a casa dos meus pais. Minha mãe envelheceu, meu pai diz que eu não deveria mais sair de casa. Entro em contato com meus amigos, ninguém atende o telefone. Estou sozinho: se fui preso devo ter feito alguma coisa, devem estar pensando. É arriscado ser visto com um ex-prisioneiro. Posso ter saído da prisão, mas a prisão permanece comigo".

Décadas após a prisão, Coelho descobriu que um informante o acusou, por esse motivo ele se tornou alvo da ditadura. "Décadas depois, os arquivos da ditadura são tornados públicos e meu biógrafo Fernando Morais fica com todo o material. Pergunto por que fui preso: 'um informante acusou você', diz ele. 'Você quer saber quem?' Eu não. Isso não mudará o passado".

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