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Proibição total ou foco na saúde da mulher: como as religiões veem o aborto

Religioso discute com ativistas pró-aborto, em Londres - Rob Pinney/Getty Image
Religioso discute com ativistas pró-aborto, em Londres Imagem: Rob Pinney/Getty Image
do UOL

Colaboração para Universa

20/06/2024 04h00

Deputado federal já no terceiro mandato, Sóstenes Cavalcante nunca esteve em tanta evidência como nos últimos dias. Ele é o principal autor do projeto de lei que equipara o aborto a homicídio após 22 semanas de gestação, mesmo em casos de gravidez derivada de estupro.

A proposta vem gerando revolta: o PL deixaria a legislação brasileira tão dura quanto à do Afeganistão. No último dia 16, manifestantes tomaram a Avenida Paulista em protesto contra a medida, e a pressão popular sobre o tema pode engavetar a proposta.

Homens discutem sobre aborto (e tentam coibi-lo) há quase tanto tempo quanto ele é praticado. Filósofos, teólogos e líderes religiosos tratam do assunto desde pelo menos a Grécia Antiga.

O próprio Sóstenes é pastor da Assembleia de Deus, já liderou a Bancada da Bíblia e, segundo sua biografia no site da Câmara dos Deputados, formou-se em teologia pelas Faculdades Faceten, de Roraima, antes de ingressar na política.

Mas a posição desses homens está bem longe de ser monolítica, mesmo dentro de suas áreas. A ideia central do projeto do deputado bate de frente com o pensamento, por exemplo, de um filósofo que viveu nos territórios romanos do norte da África, no século 4º d.C.

Ele também era teólogo, e seus ensinamentos estão entre os mais influentes do cristianismo. Seu nome era Santo Agostinho.

Agostinho condenava o aborto, achava cruel, mas o considerava um pecado bem menos grave que um homicídio. Seguia uma lógica defendida por Aristóteles, que dizia que a alma ainda não estava presente no feto nos primeiros estágios da gestação, logo não se tratava de assassinato. Aristóteles, aliás, afirmava que o aborto era uma maneira efetiva de evitar o abandono de crianças, algo comum na Grécia Antiga.

Religiosas contra o aborto durante protesto em São Paulo - Cris Faga/NurPhoto via Getty Images - Cris Faga/NurPhoto via Getty Images
Religiosas contra o aborto durante protesto em São Paulo
Imagem: Cris Faga/NurPhoto via Getty Images

Veja como as principais religiões do mundo tratam o tema.

Cristianismo

Especialistas divergem sobre como os primeiros cristãos enxergavam o aborto. Eles podiam considerar a prática um pecado, não importava o estágio da gestação, mas não há consenso quanto à gravidade desse pecado. Ou então a quantidade de semanas da gravidez fazia, sim, diferença, explica Odd Magne Bakke, especialista na história da Igreja, no livro "When Children Became People" ("Quando crianças viraram gente", sem edição brasileira), sobre o conceito de infância no princípio do cristianismo.

Por muitos séculos, teólogos e pensadores cristãos debateram sobre o início da vida, distinguindo fetos com e sem alma e, consequentemente, a gravidade do aborto. O pensamento aristotélico, defendido também por outro grande filósofo cristão, São Tomás de Aquino, perdeu força a partir do século 17.

A ideia de que a vida começa na concepção passou a predominar, o que foi reforçado, curiosamente, com avanços da ciência, como a descoberta do óvulo, em 1827. Somente em 1869 a Igreja oficializou essa visão, que perdura até hoje.

Atualmente, a Igreja Católica, as Ortodoxas e a maioria das Evangélicas se opõem deliberadamente ao aborto. Existem grupos dentro dessas denominações que defendem os direitos das mulheres, mas são minoria.

Por outro lado, alguma denominações protestantes nos Estados Unidos apoiam o direito pela escolha, com poucas ou nenhuma exceção, segundo um levantamento do Pew Research Center. É o caso da Igreja Unida de Cristo, da Igreja Episcopal (anglicana), da Igreja Presbiteriana e da Igreja Metodista.

Islamismo

Muçulmanos sunitas não têm uma autoridade central (como os católicos têm o Vaticano). Cada uma das quatro escolas de pensamento sunita têm maneiras próprias de interpretar a sharia, a lei islâmica. Então, a visão sobre aborto varia.

O maliquismo, que predomina no Norte da África e em alguns lugares do Golfo Pérsico, como Qatar e Dubai, defende que o feto recebe a alma no momento da concepção. Logo, ele proíbe o aborto em qualquer estágio.

Já no hanafismo, mais presente na maior parte de Egito, Turquia e Ásia Central, há quem defenda o aborto em até 120 dias. Não significa que a prática seja incentivada, bem longe disso.

Ela é desaprovada, mas tolerada, dependendo da circunstância. É o que explica um estudo da antropóloga alemã Constanze Weigl, especializada em saúde reprodutiva de muçulmanas pobres de zonas urbanas.

Entre os xiitas, a posição geral é de proibição. As exceções envolvem a saúde da mãe.

O aiatolá Ruhollah Khomeini, o líder da Revolução Iraniana de 1979 que comandou o país até morrer, em 1989, determinou que o aborto em até quatro meses de gestação era permitido caso ameaçasse a vida da mãe. Seu sucessor, Ali Khamenei, proibiu o aborto em caso de possíveis deformações do feto, mas depois liberou em algumas condições, como mães que já tiveram experiências de malformação fetal.

Judaísmo

Grupo judaico pró-aborto protesta em Washington DC - Anna Moneymaker/Getty Images - Anna Moneymaker/Getty Images
Grupo judaico pró-aborto protesta em Washington DC
Imagem: Anna Moneymaker/Getty Images

Diferentemente das duas maiores religiões do mundo, o judaísmo tem uma rejeição mais branda ao aborto. Dos três principais movimentos, apenas no ortodoxo não existe uma visão mais unificada. O judaísmo reformista e o conservador defendem abertamente o direito a um aborto seguro e acessível, segundo o Pew Research Center.

Já no movimento ortodoxo, que representa uma minoria de 14% da população judaica mundial, muitas lideranças se opõem à prática, exceto quando ela é necessária para salvar a vida da mulher. De modo geral, os ortodoxos proibem o aborto após o 40º dia, com exceções relacionadas à saúde.

Budismo

Algumas fontes tradicionais, como códigos monásticos budistas, afirmam que a vida começa na concepção e que o aborto deve ser rejeitado. A prática envolveria a destruição deliberada da vida.

Até aqui, o budismo segue a mesma toada de outras grandes religiões. Há também um complicador: a crença budista de que a vida é um ato contínuo.

"Nascimento e morte são como uma porta giratória pela qual um indivíduo passa repetidas vezes", explica Damien Keown, professor de ética budista na Universidade de Londres, em um artigo a respeito.

A crença na reencarnação poderia diminuir a gravidade do ato, mas não é essa a visão tradicional. "Embora seja um continuum, a vida, para o budismo, também tem início e fim claros em cada indivíduo encarnado", explica.

Lideranças budistas modernas de diversos ramos, além das leis em muitos países de maioria budista, reconhecem que uma ameaça à vida ou à saúde física da mãe é uma justificativa aceitável para o aborto. Ainda assim, a prática pode ser vista como um ato com consequências morais.

Hinduísmo

Indiana após aborto em clínica de Hazipur - Priyanka Parashar/Mint via Getty Images - Priyanka Parashar/Mint via Getty Images
Indiana após aborto em clínica de Hazipur
Imagem: Priyanka Parashar/Mint via Getty Images

A maioria dos textos hindus clássicos condena o aborto. Mas o "Sushruta Samhita", um dos tratados de saúde mais importantes da Antiguidade e uma das bases da medicina aiurveda, o recomendava em casos de problema na gravidez.

Na prática, como em todo o resto do mundo, o aborto é uma realidade, por mais que a religião tente proibi-lo. Mas a Índia, maior nação hindu do mundo, tem uma característica que a difere da maioria dos países.

A preferência cultural por filhos homens leva muitas mulheres a fazerem o chamado "feticídio feminino". Esse tipo de aborto seletivo, somado ao assassinato de meninas recém-nascidas, fez com que a Índia, por muito tempo, tivesse mais homens do que mulheres.

Em 1990, a cada 1.000 homens no país, havia apenas 927 mulheres. Em 2021, graças a políticas que condenavam essas práticas, ao empoderamento feminino e à queda da taxa de reprodução, a proporção passou para 1.020 mulheres a cada 1.000 homens. O jogo virou, pelo menos nisso.

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