Há dois anos, show 'ABBA Voyage' encanta e 'engana' multidões em Londres
"Eu amo vocês!", gritam fãs histéricos de uma das maiores bandas pop dos últimos 50 anos durante as performances quase que diárias de "ABBA Voyage", show que se tornou nos últimos dois anos uma das atrações mais concorridas da capital inglesa.
Antes de sua estreia, em maio de 2022, £140 milhões (cerca de R$ 965 milhões) tinham sido investidos na produção do show, incluindo-se a construção de uma arena de metal e madeira no leste de Londres especialmente para a performance, equipada com 291 alto-falantes, telões de LED de altíssima definição, e capacidade para abrigar 3.000 pessoas sete vezes por semana - sábado e domingo são duas performances por dia.
Quando a residência de cinco anos terminar por volta de 2027, os produtores pensam em reproduzi-la em Las Vegas, Nova York, Singapura e Sydney. E nada impede que o Brasil também tenha a sua ABBA Arena além de um investidor interessado. O lucro é garantido.
Até setembro do ano passado, segundo informações da agência de notícias Bloomberg, o investimento já tinha sido pago. Mais de 1,5 milhão de ingressos foram vendidos: arrecadação total de £150 milhões (pouco mais de R$ 1 bilhão). São £2 milhões (quase R$ 14 milhões) por semana. Tudo isso sem um integrante no palco, pois o ABBA oficialmente encerrou sua carreira em 1982.
Mas como isso é possível? É difícil de explicar. Porque o que o ABBA está fazendo em Londres é tão inédito e chocante que só vendo para crer. Ou, como escreveu o tabloide britânico "Evening Standard": "se pelo menos fosse aceitável começar uma crítica com o seguinte emoji: [cabeça explodindo]."
A performance que traz de volta Agnetha Fältskog, Benny Andersson, Björn Ulvaeus e Anni-Frid Lyngstad, como o nome sugere, é uma verdadeira viagem em todos os sentidos possíveis. Embora os quatro membros da banda ainda estejam vivos, todos já passaram dos 70 anos. E se para artistas como Rolling Stones e Madonna idade seja apenas um número, os suecos do ABBA não têm a mesma vitalidade.
No evento para celebrar os dois anos do show que aconteceu Londres no último dia 27 de maio, era possível perceber as mãos trêmulas do pianista Benny, que junto ao parceiro Björn respondia a perguntas enviadas por fãs e de uma plateia de famosos como o cantor Ricky Astley e a atriz indicada ao Oscar Rosamund Pike.
As duas integrantes femininas raramente dão entrevistas, mas de vez em quando aparecem na ABBA Arena para ver o show da plateia. Anni-Frid, ou Frida como é chamada pelos mais próximos, normalmente usa uma bengala para se locomover. Portanto, o leitor já pode intuir que quando a audiência se deixa levar pela ilusão e grita "eu amo vocês", não é necessariamente para os membros da banda.
Nada disso, no entanto, significa que a banda tenha parado no tempo. Ao contrário, trata-se de uma banda de septuagenários que se aposentaram há 40 anos e, em pleno século 21, está revolucionando o mundo dos shows ao vivo.
Ficção ao vivo
"ABBA Voyage" foi concebido pelo produtor Ludvig Andersson, filho de Benny, e pela produtora Svana Gisla, da série "Chernobyl". Simplificando, é uma mistura de videogame com tecnologia de efeitos visuais de ficção científica, mas com todos os elementos essenciais de um show de rock. Na verdade, é bem além disso, porque ninguém grita "eu te amo" para uma tela de cinema, nem se questiona se existe gente de verdade ali, como fez uma senhora na primeira vez que este repórter viu o show dois anos atrás.
Em primeiro lugar, para ressuscitar o ABBA em toda sua plenitude, os quatro integrantes participaram de um processo semelhante ao que aconteceu com Mark Hamill em "O Mandalorian": Agnetha, Benny, Bjorn e Anni-Frid foram filmados pela equipe da empresa de efeitos visuais International Light and Magic durante cinco semanas, utilizando 160 câmeras, trajes e capacetes com sensores de captura de movimento. O trabalho da ILM pode ser visto em filmes como "Gladiador", "Star Wars: o Despertar da Força" e "O Último Jedi".
Portanto é bom deixar claro é que "ABBA Voyage" não é um show de hologramas, mas aquilo que a produção chama de ABBAtars, um misto de live action e tecnologia digital em que seres humanos são digitalizados e renderizados. Cada expressão, cada movimento dos quatro integrantes foi capturado. Em seguida, dublês jovens deram a vitalidade necessária à coreografia que os ABBA ensaiaram com um dos coreógrafos do Royal Ballet, Wayne McGregor.
Em termos de figurino, os ABBAtars vêm vestidos com criações de Dolce & Gabbana e Manish Arora. E, embora mais de 120 croquis tenham sido desenhados, nenhum dos 20 que chegaram ao corte final foram costurados ou provados pelos membros. Eles só existem no universo digital.
Até aí, nada de diferente do que se vê nos cinemas, mas a grande sacada de "ABBA Voyage" é como o show dilui as fronteiras entre o real a o digital. E faz isso não abandonando o que é real. Começando que existem seres humanos no palco: a banda de dez músicos, incluindo três backing vocals, que aparecem na lateral esquerda do palco, entre a plateia e os ABBAtares.
Nos dois primeiros anos, a banda tinha como percussionista a brasileira Tuca Milan, e os ensaios com a banda foram conduzidos pessoalmente por Benny Andersson, que se disse surpreso em saber que tanta gente jovem se interessaria em tocar para "uns velhotes como nós".
Em seguida vem o auditório com sua geometria hexagonal, que dá uma ideia de profundidade de campo e perspectiva que nos impede de perceber onde as telas de LED terminam e onde começa a arena. Iluminação nesse show é tudo. As telas funcionam como um revestimento interno da arena, que abraça o público.
No teto há luminárias e espelhos circulares que refletem o que acontece na arena, nas telas, e que, suspensos por fios quase transparentes, giram como discos voadores vindos do espaço. Aliás, tudo o que acontece no palco é uma extensão das luzes na arena. E aí você não sabe mais o que está ali e o que é apenas uma imagem digitalizada.
Assista a trailer com cenas de ABBA Voyage:
No número de abertura, "Visitors", uma canção meio obscura do repertório da banda, com uma sonoridade psicodélica típica dos anos 1970 que fala sobre esses visitantes que vêm de um outro lugar no espaço e no tempo, esses discos voadores se movem (ou pelo menos nos dão a ilusão de movimento) da arena para o palco, imitando os cilindros de teletransporte da série "Star Trek" e materializando os ABBAtares. A essa altura o público está em delírio.
Especialmente porque a tecnologia de "avatarização" da ILM não é apenas convincente em termos de luz, mas especialmente em termos de sombras. Durante a performance de "When All Is Said And Done", os ABBAtares brincam com esse recurso, saindo do foco de luz e indo para o "a parte escura do palco", onde se vê sua silhueta.
Video game disco
Mas talvez a melhor parte do show seja a seção disco, quando o ABBA empilha cinco hits: "Eagle", "Lay All Your Love On Me", "Summer Night City", "Gimme, Gimme, Gimme (A Man After Midnight)" e "Voulez-Vous". Para entender essa parte é preciso voltar para a entrada na arena, antes do início do show.
O público se depara com três telões translúcidos, como se fossem as cortinas, onde são projetadas as imagens de uma floresta. Por trás das árvores é possível ver um personagem que se assemelha muito ao protagonista do videogame "Zelda".
Este personagem vai aparecer em uma animação ao fim do segundo bloco do show. Trata-se de um interlúdio projetado em tamanho gigante na arena que lembra muito os games de RPG. O personagem do início caminha por paisagens diversas, coletando "easter eggs" até que encontra um templo, onde irá "destravar" a próxima fase do ABBA game, a fase disco, em que nossos heróis aparecem com trajes idênticos aos do filme "Tron", com luzes de neon, tocando no espaço sideral.
Ao fundo está o planeta Saturno, e a definição da imagem é tão perfeita que é possível ver os asteroides gravitando nos anéis do planeta. Tudo mentira, mas assustadoramente real...
Westworld
Durante o processo de concepção do show, Björn Ulvaeus disse ter duas preocupações. A primeira era que não fosse algo mal-feito a ponto de envergonhar a banda e decepcionar os fãs, pois achava que para fazer o que ele e Benny imaginavam seria necessária uma tecnologia que ainda não existia.
"Um tour de um ano com nós todos velhinhos, não, obrigado. Agora uma noite em companhia do ABBA, não exatamente como eles eram nos anos 1970, mas tampouco como eles estão aos 70; um ABBA que transcende o tempo, com uma banda ao vivo de tirar o fôlego e um show de luzes estelar? Aí você está falando a minha língua."
A segunda preocupação era um show que fosse tão tecnológico que seria frio a ponto de o público não reagir. Tinha que ser emocional. Durante as conversas com a supervisora de efeitos visuais Nicky Penny, que trabalhou com Sandra Bullock em "Gravidade", os produtores refletiram que este filme é tecnicamente espantoso, mas também é um filme sobre uma mãe que quer voltar para casa. Assim como bons filmes, bons shows de rock e pop têm uma narrativa.
Neste caso, a viagem no tempo de uma banda que de alguma forma conseguiu sobreviver nas mentes e corações das pessoas por cinco décadas. Mas como se diz na série da HBO "Westworld", que discute questões de inteligência artificial, consciência e memória: "nós vivemos tanto quanto a última pessoa que se lembra da gente". Por isso que na ABBA arena se vêem pessoas de todas as idades. As que cresceram ouvindo ABBA, ou ouvindo seus pais ouvirem ABBA, além das gerações que se apaixonaram pelas canções vendo "Mamma Mia" no cinema e no teatro.
E aí é que entra o elemento mais importante de todos: a música. Ter em seu repertório hits como "Dancin' Queen", "Knowing Me, Knowing You", "Fernando" e S.O.S." já é garantia de um karaokê. Durante a sessão de perguntas e respostas, Benny falou que já viu o show inúmeras vezes e que nada daquilo seria possível sem a reação emocional do público.
E como se não bastasse tudo isso, os ABBAtares "interagem" com a plateia, fazendo comentários sobre sua carreira, sempre dando a deixa para os aplausos. E em pelo menos um momento apontam o microfone para o público cantar junto, algo que este repórter não tinha percebido nas duas primeiras vezes que viu o show.
É como se a inteligência artificial por trás dessa tecnologia toda estivesse aprendendo as reações da plateia e se adaptando a ela. E caso o leitor esteja se perguntando se na terceira vez é possível notar os detalhes que entregam todo o truque, a resposta é não. Inclusive parece que ficou ainda melhor.
Outra semelhança com o enredo de "Westworld" é o número final: "The Winner Takes It All", em que aparece um coral de avatares, pessoas comuns que também foram digitalizadas somente para o show. Ou seja, em um futuro não tão distante é bem provável que todos nós tenhamos nosso próprio avatar em alguma nuvem.
O cantor Ricky Astley, de "Never Gonna Give You Up", fez a pergunta mais profunda e perturbadora da noite: "Vocês sabiam que a música os tinha eternizado, mas agora vocês realmente serão eternos. Isso os assusta?" Björn respondeu que embora já tenha pensado sobre isso, ainda não tinha conseguido elaborar uma resposta. "É algo que nunca aconteceu a ninguém. É meio absurdo."
Mais absurda ainda é a última cena da noite. O show termina, os ABBAtares desaparecem, e do canto direito vemos os quatro membros, hoje, somando quase 300 anos de idade vindo ao centro para agradecer ao público. Alguém então pergunta: "Mas são eles?" Outro responde: "Não sei!".