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Grávida de 6 meses morreu após 5 dias pedindo ajuda: o caso Alyne Pimentel

Alyne Pimentel morreu aos 28 anos, grávida de 6 meses, por negligência médica - Reprodução/Centro Brasileiro de Estudos da Saúde
Alyne Pimentel morreu aos 28 anos, grávida de 6 meses, por negligência médica Imagem: Reprodução/Centro Brasileiro de Estudos da Saúde
do UOL

Cristina Fibe

Colaboração para Universa, em São Paulo

14/11/2022 04h00

Foram cinco dias pedindo socorro.

Quando morreu, em 16 de novembro de 2002, Alyne da Silva Pimentel Teixeira tinha 28 anos e uma filha de 5. Era uma mulher negra, de baixa renda, moradora de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, e estava grávida de seis meses de sua segunda menina. Alyne perdeu seu feto para o descaso do serviço de saúde. E sua vida, no corredor de um hospital, por hemorragia e falta de leito.

Sua morte, que completa 20 anos, motivou a primeira condenação por um órgão da ONU responsabilizando um Estado —o brasileiro— por uma morte materna evitável. Em outras palavras: se tivesse recebido a atenção e o atendimento devidos, Alyne estaria viva. E é dever do Estado impedir mortes como a dela, causada por violência obstétrica e racismo institucional.

No dia 11 de novembro de 2002, sentindo fortes dores abdominais e náuseas, Alyne procurou a Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória, uma clínica privada em Belford Roxo que possuía convênio com o SUS (Sistema Único de Saúde). Sem fazer exames laboratoriais ou ultrassonografia, um ginecologista receitou a ela analgésicos e a mandou de volta para casa. No dia 13, Alyne voltou à clínica. As dores tinham aumentado.

Ao interná-la, outro médico percebeu a ausência de batimentos cardíacos do feto. A jovem foi informada de que teria de dar à luz o bebê natimorto. Esperou sete horas para enfrentar um parto induzido e cheio de complicações. Ainda passando mal —e sem direito a acompanhante, o que por si só já é uma infração aos direitos da gestante—, contou mais 14 horas até ser submetida a uma cirurgia de curetagem, raspagem uterina que retira os restos da placenta. A família foi proibida de visitá-la.

Feto ficou morto por dias no útero

No dia seguinte, 15 de novembro de 2002, quando familiares conseguiram vê-la, seu quadro de saúde era ainda pior. Desorientada, teria de ser removida da clínica para um hospital que, em tese, teria mais recursos para socorrê-la. Depois de oito horas de espera por uma ambulância, foi transferida em estado crítico —e sem prontuário médico— para o Hospital Geral de Nova Iguaçu, onde, com hemorragia e sinais de coma, ficaria largada num corredor do centro de saúde, por falta de leito.

Alyne Pimentel morreu às 19h do dia 16 de novembro de 2002. Sua filha ficou sob os cuidados da avó materna, mãe de Alyne, Maria de Lourdes Pimentel, que, além do luto e das dificuldades financeiras, passaria por um périplo jurídico em busca de reparação. Embora uma autópsia tenha determinado como causa da morte uma hemorragia digestiva, a própria Casa de Saúde de Belford Roxo depois informaria à mãe de Alyne que o feto ficara dias morto na barriga da paciente, e que essa seria a causa do agravamento de seu quadro.

"Maria de Lourdes procura então a Justiça para impedir que aquilo aconteça com outras mulheres", conta a advogada Beatriz Galli, que à época trabalhava para a ONG Advocaci (Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos), uma das responsáveis pela assessoria jurídica prestada à família de Alyne.

Mas o processo cível, aberto em 2003, atravessava os anos sem nenhuma conclusão. Em 2007, Maria de Lourdes, por meio da Advocaci e do Center for Reproductive Rights (Centro pelos Direitos Reprodutivos), apresentou o caso a um órgão ligado à ONU, o Cedaw, comitê da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.

Brasil foi primeiro país do mundo condenado por morte materna evitável

Em 2011, o Cedaw considerou o Estado brasileiro responsável pela morte de Alyne, recomendando ao país que indenizasse a família e tomasse medidas efetivas contra a violência obstétrica. Foi a primeira punição por esse tipo de situação dada pelo órgão. Em cerimônia em Brasília em 2014, Maria de Lourdes foi indenizada e recebeu uma placa com o nome de sua filha, fixada no hospital em que morreu.

cerimônia em que estado brasileiro reconheceu responsabilidade pela morte de alyne pimentel - Valter Campanato/Agência Brasil - Valter Campanato/Agência Brasil
Maria de Lourdes Pimentel, mãe de Alyne (à esq.), e as então ministras Maria do Rosário (segunda da esquerda para a direita), Eleonora Mennicucci (segunda da direita para a esquerda) e Luiza Barros (à dir.) durante reconhecimento público, em nome do governo federal, da responsabilidade do Estado na morte de Alyne
Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil

Já na área cível, a filha de Alyne só começou a receber a reparação devida em 2021, 19 anos após a morte da mãe e pouco tempo depois da morte da avó Maria de Lourdes, vítima da covid.

À espera da Lei Alyne Pimentel

A luta para evitar tragédias como a de Alyne não acabou. "Uma das principais recomendações do Cedaw é que haja uma lei sobre violência obstétrica no âmbito federal", afirma Galli, hoje na Ipas, organização internacional que trabalha com direitos sexuais e reprodutivos em diversos países.

"A lei poderia inclusive levar o nome de Alyne, como aconteceu no caso Maria da Penha. Seria uma forma de reconhecer a morte dela como um caso tanto de racismo institucional quanto de violência obstétrica. Isso até hoje não foi feito."

A advogada Juliana Cesario Alvim, consultora do Center for Reproductive Rights, considera o caso importante para a discussão mundial de direitos humanos.

Para ela, três aspectos da decisão do Cedaw se destacam: "O primeiro é a abordagem interseccional que o comitê faz, observando o impacto dessa violação específica numa mulher negra; outro é reconhecer o direito à saúde materna como um direito humano, o que é muito importante e não necessariamente óbvio". Por fim, diz ela, é emblemática a condenação por uma atuação que envolve uma clínica privada, afirmando que o Estado tinha o dever de fiscalizar.

"A maior parte das mortes maternas são evitáveis e decorrem de uma série de violações que começam às vezes muito antes", afirma Alvim. "Há a questão do acesso à saúde pré-natal que, com frequência, é inviabilizada por uma série de barreiras, sobretudo no caso de mulheres negras e indígenas. É um conjunto de violações que acarreta numa morte."

Beatriz Galli concorda. E acrescenta: de lá para cá, não evoluímos muito. "Teve um pequeno declínio nas mortes maternas, mas não entre as mulheres negras. Entre elas, o número de mortes segue muito alto", diz.

Segundo a ONU, a taxa de mortalidade materna no Brasil hoje é de 107,53 mortes a cada 100 mil nascidos vivos —os níveis são similares a dos anos 1990 e foram agravados, nos últimos anos, pela pandemia. O país ocupa o primeiro lugar do ranking de mortes de grávidas e puérperas (mães de recém-nascidos), segundo a IFF/Fiocruz (Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira).

"Quantas Alynes terão que morrer para encararmos a morte materna evitável como uma questão de direitos humanos das mulheres, que o Estado tem o dever de prevenir?"

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