'Quero ficar vivo': o dono de bar no Rio que é a favor do lockdown
No próximo 23 de abril, dia de São Jorge, o bar Casa Porto, no Rio, vai enviar 200 panos de prato com o santo guerreiro estampado para os clientes que pedirem cozido por delivery. No início de abril, sábado de Aleluia, o botequim criou cem bonequinhos de vodu do "excelentíSSimo", seguindo a tradição da Malhação de Judas. Bombou de encomendas e comentários no Instagram.
Frequentadores esgotaram o estoque em poucos minutos. Apoiadores do presidente, por sua vez, hackearam o WhatsApp do lugar e ameaçaram o proprietário, Raphael Vidal, 38. Para entender as razões dessa animosidade é preciso compreender a biografia do anfitrião, um empresário que é a favor do isolamento.
Este homem inquieto de pouco mais de 1,65m impõe respeito no salão do bar. Roda de um lado para o outro com o celular na mão e os óculos pendurados na gola da camiseta — "com máscara não dá para ficar o tempo todo com ele, né". Está sempre a postos para puxar uma cadeira (perto da janela) e conversar com amigos e clientes, de onde consegue ver o que se passa na casa e controlar a playlist, que sai de um outro celular, plugado numa caixa.
"Sou uma voz na contramão porque acho que tinha que estar fechado, só que com contrapartidas do governo. Não faço e nem convoco funcionário para manifestação da rua com cartaz de 'vamos morrer de fome'. Quero ficar vivo." No Rio, bares e restaurantes fecharam para atendimento presencial de março a julho de 2020 e, entre o fim de março e 9 de abril de 2021, em respeito à determinação da prefeitura.
Para ele, não falta dinheiro, mas vontade política para resolver o impasse. "Não sou lulista, tenho dezenas de críticas ao Lula inclusive. O que estou dizendo é que o governo Bolsonaro não olha para os pobres."
Em duas horas de conversa na Casa Porto, Raphael Vidal descerra sua vida, do momento quando saiu de casa, fugindo da mãe alcoólatra e do pai agressivo, até a atual luta diária para manter as contas pagas, os 23 funcionários empregados e a vizinhança em situação de rua alimentada. Durante a conversa, ao menos seis famílias de pedintes entraram e saíram no boteco.
O bar abre de segunda a segunda. O número de mesas ali saiu de 40 para 11, de 2020 para cá, quando entrou em cena um novo personagem: o motoqueiro do delivery.
No salão, uma estante serve de biblioteca pública (clientes podem pegar livros e depois devolver, sem ficha nem controle), com a placa e uma imagem da vereadora Marielle Franco; uma carteira de trabalho ampliada e a bandeira do arco-íris (o bar apoia o casamento entre LGBTQIA+). A trilha sonora é 100% nacionalista.
Do prelo ao morro
Vidal saiu de casa aos 13 e, aos 16, entrou para a faculdade de filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Da infância pobre em Campinho, bairro da zona norte do Rio, até chegar ao Morro da Conceição, na zona portuária, na maior parte desse tempo ele vivenciou a rua. "Sempre fui um cara de rua, de botequim, da calçada."
De dois em dois anos, a família tinha de mudar de casa porque a vizinhança chamava a polícia para resolver os bate-bocas entre seus pais. "Era porrada, porrada e mais porrada. Ele faleceu, ela está bem, não bebe mais, fizemos as pazes."
Vidal morava perto da Cidade de Deus quando saiu de casa. Pegou um ônibus e, em 40 minutos, estava na Praça Seca. "Sentei no meio-fio e comecei a chorar. Por sorte, e pelo privilégio de ser branco, um taxista parou e me levou até a casa de uma tia em Vista Alegre. Morei três anos com ela, meu tio e dois primos."
Numa escola pública de Irajá, o menino fundou o "Jornal Local" e, com a venda de anúncios, conseguia ajudar nas despesas da casa. No curso de filosofia, começou a escrever cartas para vender na porta do Paço Imperial. Um ano depois, criou a revista online "Bagatelas.Net" — em homenagem a Lima Barreto, que tem um livro chamado "Bagatelas".
Fez tanto sucesso que o projeto se desdobrou num encontro literário na livraria do Paço Imperial, incluindo nomes de peso da literatura nacional, como Ruy Castro e Sérgio Sant'Anna.
Dali, Raphael Vidal recebeu a primeira oferta de emprego com carteira assinada, na mesma Livraria do Paço. Foi a primeira "experiência revolucionária" de sua vida.
Anos depois, foi trabalhar numa editora de divulgação científica — "a segunda grande revolução da vida". E, em seguida, passou pela editora Pallas, de literatura afro-brasileira, o que o encorajou a criar o primeiro festival literário no Morro da Conceição, em 2012.
Resgate e preservação
A emblemática Casa Porto surgiu em 2013, como um espaço cultural, não um botequim. Era a realização de um sonho. Vidal convocou alguns moradores da vizinhança para compor o quadro de funcionários e passou a oferecer cursos, shows de músicos independentes, tudo de graça, com apoio de leis de incentivo.
"Foi lindo por quatro anos, mas, passada a Olimpíada [em 2016], o Estado quebrou, e com isso o Porto Maravilha afundou e eu perdi os patrocínios. Fiquei devendo mais de R$ 200 mil."
Outra vez era preciso uma guinada. Vidal foi aconselhado pelo comparsa de boemia Paulo Mussoi — à época, crítico de bar do jornal "O Globo" — a transformar a Casa Porto num botequim.
"Tinha vergonha de fazer isso porque respeito muito a cultura do boteco. No entanto, em 5 de março de 2018, nascia o bar e restaurante Casa Porto, com coxinhas da Dona Didi, minha avó, e moela à milanesa, inspirada num pé-sujo onde eu almoçava na época da faculdade, por R$ 1."
As pessoas abraçaram a novidade. Até 2020, tudo ia bem, obrigado, até vir a pandemia. Vidal decidiu mandar todos os funcionários do grupo de risco e quem depende de transporte público para casa, com os salários mantidos. Ficou apenas com os que moram perto.
Uma saída imediata foi o delivery. Vidal convocou sete mototaxistas da vizinhança e criou uma frota independente que, até hoje, leva comida até as zonas norte e sul. "Não paramos nenhum dia", informa. O delivery, atualmente, corresponde a 50% do faturamento.
Com mais gente pedindo, o engajamento nas redes aumentou. Os posts diários são do empresário, sempre em tom de sarcasmo. "É o que eu sempre vivi em botequim. Sou sincero nos posts, do tipo 'estou na merda'."
Com a reabertura, ele resolveu apostar em conteúdos para alavancar as vendas e criou o que chama de "divisão de camisetologia". O marco foi o auê causado pelo bonequinho de vodu.
"Recebi ameaças de morte, vieram fazer uma reportagem e eu neguei, por medo. Não sou o 'Porta dos Fundos', não tenho dinheiro, nem advogados."
Este mês, ele inaugurou o Bafo da Prainha (onde emprega mais 11 pessoas), uma casa de churrasquinhos com mesas ao ar livre, no mesmo Largo São Francisco onde fica a Casa Porto. Praticante de Ifá, uma religião que veio de Nigéria e Cuba, Vidal acredita em Exu, orixás e simbolismos.
Em 13 de abril, Vidal compartilhou nas redes uma angústia. Ele sofreu uma crise nervosa depois de a Light quase cortar a energia da Casa Porto. "Se não chego na hora com o comprovante de pagamento na mão, perderíamos todo nosso estoque."
Ao se confrontar com o passado, Raphael Vidal revela que, se pudesse escolher alguém para ser por um dia, esse alguém seria ele na época em que entrou na faculdade.
"Foi um episódio de esperança, o mundo se abrindo na minha frente. Hoje, estou mais amargo, com o pé no chão, menos sonhador. A vida tem sido dura com todos. Gostaria de me preocupar menos com o boleto vencendo ou com a Light vindo apagar minha luz, e ter um pouco mais de leveza. Eu era mais leve."