Zeca Borges, do Disque Denúncia, deve transformar serviço em livro e série
No apartamento de Zeca Borges, em Ipanema, os dias começam às 6h. Pouco antes, um sabiá na rua Barão da Torre já arrisca os primeiros trinados. Dorme-se pouco quando se tem 77 anos. Até o início da pandemia, o coordenador do Disque Denúncia — central que recebe ligações anônimas sobre atividades criminosas — gostava de percorrer a rua Visconde de Pirajá e visitar sebos e livrarias.
Mas, desde março, trocou o passeio pelo playground do prédio onde mora, vazio pela manhã. Lá, caminha um pouco e toma sol.
Gaúcho de Porto Alegre, José Antônio Borges Fortes mudou-se para o Rio aos 15 anos. Hoje, não sabe mais o que é viver longe do sol, da areia e do mar. Nunca morou a mais de cem metros da praia. Leitor voraz, é daqueles que devoram vários títulos ao mesmo tempo. Diz não ter fôlego para ler um livro só. Cansa logo.
Em isolamento social, Zeca tem exercitado outro hobby: a escrita. Alguns de seus minicontos são publicados no blog Carioca de Porto Alegre. Inspirado em casos reais, chegou a criar uma personagem delegada, a Marivalda, espécie de versão feminina do detetive Mandrake, criado por Rubem Fonseca (1925-2020), e do delegado Espinosa, de Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020).
"Nada do que escrevo está muito longe da verdade", cita Ian Fleming (1908-1964), o criador de James Bond. Indagado sobre se pretende enveredar pela carreira literária, despista: "Sou escritor de Facebook, nada mais. Se você tem uns três leitores é o quanto basta para escrever".
300 denúncias por dia
Coordenador do serviço que, em 25 anos, recebeu 2,6 milhões de denúncias e ajudou a prender 20 mil criminosos — como os traficantes My Thor, Nem da Rocinha e Elias Maluco, o assassino do jornalista Tim Lopes (1955-2002) —, Zeca nunca trabalhou tanto. Exército de um homem só? Nada disso. Ele conta com 25 atendentes. "Todo nosso pessoal está trabalhando de casa e sem horário definido. Temos que insistir com alguns, que exageram, avançando noite adentro." O número de atendentes, infelizmente, varia muito. "Já foram 35, quando tínhamos três turnos, 24 horas por dia, sete dias por semana", lamenta.
O que não muda é o treinamento. Eles são treinados por policiais que ensinam como conseguir informações valiosas dos denunciantes. Cada um tem um codinome e é orientado a não dizer com o que trabalha, nem à própria família. Em 25 anos de DD, Zeca nunca sofreu qualquer tipo de ameaça. Seu carro não é blindado, ele não anda com escolta, nem tem porte de arma. "Nunca tive. Nem vejo razão para ter. Ao contrário, acho que, se tivesse uma arma, seria muito perigoso."
O sucesso do DD pode ser atribuído ao tripé população-polícia-imprensa. O morador traz a informação; a polícia dá resultado e a imprensa estimula novas denúncias. Desde agosto de 1995, quando foi criado, o serviço já ajudou a solucionar crimes de forte comoção popular, como os sequestros dos estudantes Marcos Chiesa, de 16 anos, e Carolina Dias Leite, de 18. Os dois foram sequestrados em 25 de outubro de 1995 e, graças às denúncias repassadas à polícia, resgatados de cativeiros em Campo Grande, zona norte do Rio, pouco mais de uma semana depois.
Sobre os casos de maior repercussão, cita dois: a chacina da Baixada, a maior da história do Rio, com 29 mortos, em 2005, que resultou em 975 denúncias, e a morte do menino João Hélio, de 6 anos, em 2007. "O pai de um deles ligou, denunciou o paradeiro do filho e disse que ele tinha que pagar pelo que fez", conta. Quando o assunto é sua maior frustração, não pensa duas vezes: o sumiço de Priscila Belfort, em 9 de janeiro de 2004. "Trabalhamos exaustivamente e nada conseguimos."
Disque 2253-1177 para denunciar
Nas últimas semanas, Zeca tem compartilhado essas e outras histórias com o jornalista Mauro Ventura. Os dois se conhecem desde 1996, quando o então repórter do Jornal do Brasil cobriu, durante um ano, a onda de sequestros no Rio. Por sugestão do editor Roberto Feith, à frente do História Real, o novo selo de não-ficção da editora Intrínseca, as recordações do coordenador do DD serão contadas em livro.
Escrever um livro sobre o DD era uma ideia antiga que não foi adiante por falta de tempo, recorda Mauro. "Até que, há pouco, eu conversava com o Roberto e ele perguntou se eu não gostaria de fazer um livro sobre os grandes casos do DD. Foi uma feliz coincidência."
O projeto inclui, ainda, a produção de uma série de TV. "Cada caso poderia ser um episódio", sugere Zeca. Além de entrevistar o coordenador do DD por Zoom e, eventualmente, tirar uma ou outra dúvida por telefone, email ou WhatsApp, Mauro tem entrevistado desde os atendentes da central telefônica até os policiais que participaram das investigações.
"Zeca lida com um tema pesado, a criminalidade, mas mantém a leveza e o bom humor. O DD tinha tudo para não dar certo. Funcionou graças à sua perseverança. Se fosse outra pessoa, é provável que o serviço já tivesse fechado há tempos", observa Mauro.
Engenheiro civil formado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Zeca Borges trabalhava no mercado financeiro quando, em fevereiro de 1995, foi chamado pelo empresário Luiz Cezar Fernandes, fundador do Banco Pactual, para criar um serviço telefônico de combate ao sequestro. Topou, mas, inspirado no "Crime Stoppers", projeto que surgiu em Albuquerque, no Novo México (EUA), em 1976, impôs garantias: do anonimato do denunciante, da não subordinação à polícia e da não ingerência política. "Se o DD fosse público, mudaria de nome a cada eleição", explica.
Um dos idealizadores do projeto foi o publicitário Roberto Medina. Em junho de 1990, o organizador do Rock in Rio passou 15 dias em poder de sequestradores. Foi liberado na noite do dia 21 pelo traficante Maurinho Branco, depois do pagamento de um resgate de US$ 2,5 milhões. "O Estado é hoje bem menos violento do que era em nossa época inicial. Os anos 1990 foram assustadores", avalia Zeca.
Com o sucesso do (21) 2253-1177, que ajudou a apreender 10 mil armas, 20 mil toneladas de cocaína e nove mil toneladas de maconha, o serviço logo se expandiu para outros estados (Pernambuco, em 2000, foi o primeiro deles) e países, como Chile e Argentina. Até hoje, a maior recompensa foi de R$ 100 mil — paga com doações — por denúncias que levaram à prisão do assassino do jornalista Décio Sá, em São Luís (MA), morto a tiros em 23 de abril de 2012. "Paga-se muito pouco em recompensas. A maioria liga por indignação", conta Zeca.
Mas, e o que esperar do futuro? Ingressar na política, por exemplo, é uma hipótese que ele refuta. "Não tenho a menor vocação", avisa. De algo, porém, tem certeza. Seus atendentes jamais serão substituídos por chats ou aplicativos de última geração. "É preciso insight e empatia. E isso a máquina (ainda) não tem."