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O que é a afroconveniência e por que ela é tão discutida nas eleições

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Imagem: Getty Images
do UOL

Brunella Nunes

Colabração para o TAB

28/10/2020 04h00

Com o debate sobre representatividade negra em ascensão, surge também a "afroconveniência" eleitoral. Em 2020, o termo vem acompanhado de um verdadeiro fenômeno: é a primeira vez que temos uma maioria de candidatos a vereadores autodeclarados pretos e pardos. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a partir de registros da Justiça Federal, mais de 42 mil postulantes alteraram a raça nas fichas cadastrais, resultando numa mudança histórica nos registros.

O aumento não surge por acaso. Além da pressão popular por mais representatividade, no último mês, foi aprovada pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski, uma liminar para equilibrar o fundo eleitoral entre candidatos negros e brancos, obrigando os partidos políticos a dividirem proporcionalmente seus recursos aplicados em campanha e tempo de TV.

Em um levantamento feito pelo UOL, entre os 545.437 candidatos inscritos, 49,8% se autodeclararam pretos e pardos, e 47,8% informaram serem brancos. Amarelos e indígenas têm números ainda bem baixos, com 0,36% e 0,4%, respectivamente.

No caso dos vereadores, pretos e pardos somam 50,8% das candidaturas, e brancos ficam na média de 46,8%. Almejando o cargo de prefeito e vice-prefeito ainda há uma maioria branca, com 63,2%. O PSTU é o partido com maior participação de negros e pardos para cargos majoritários em 2020, enquanto o Novo possui a menor taxa, com apenas dois candidatos negros em todo o país.

Mestre em história social do Instituto Federal de Mato Grosso e pesquisador das relações étnico-raciais, Lucas Café afirma que, apesar da conquista, é preciso ter cautela na comemoração. "Eu estaria muito mais preocupado se esses dados tivessem regredido. É um fator positivo, inclusive de aceitação de identidade, que ganhou fôlego nos últimos 20 anos. Mas não é porque houve o aumento que a política é saudável em relação às questões raciais ou que a estrutura política desapareceu."

A medida de ação afirmativa trouxe à tona discussões em relação às brechas na lei. A principal delas esbarra na autodeclaração de cor e raça, que é bastante subjetiva e, nas mãos erradas, pode ser utilizada como estratégia de ampliação ou desvio de recursos, como aconteceu em 2018 com as candidaturas femininas do PSL, que serviram de laranja. "O afroconveniente é quem quer ser negro apenas para querer utilizar direitos que foram criados para atender à população negra marginalizada e subrepresentada historicamente", explica Café.


Democracia racial

Nas mudanças das fichas eleitorais, houve 36% de alteração da cor branca para parda e outros 30% de pardo para branco. Cerca de 22% trocaram de pardo para preto ou preto para pardo. Por fim, 2% dos candidatos foram de branco para preto na autodeclaração.

Alguns candidatos, assim que questionados, alegaram que a alternância na raça foi fruto de "confusão" na hora de preencher as fichas. Outros se muniram de algum nível de parentesco negro para justificar a autodeclaração, como fez Caio Miranda (DEM), João Paulo Demasi (PSOL), marido de Bela Gil, e Moema Gramacho (PT).

Caio Miranda afirma não ser "lido como branco". "Sou pardo e corrigi minha autodeclaração em 2018, quando não havia cotas para negros no fundo eleitoral e o fiz porque assim me identifico. Nunca usei nem utilizarei cotas raciais porque entendo que são um mecanismo importante e fundamental de inclusão para negros, e não usei fundo eleitoral ou partidário nas eleições de 2016, não utilizarei em 2020. Meu caso está totalmente fora do debate sobre cota racial para acesso a recursos públicos nas eleições."

O cientista político e vice-coordenador do GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Luiz Augusto Campos, vê exagero nos alertas de afroconveniência eleitoral. "Particularmente, não acho que existe um grande movimento nesse sentido, mesmo porque a lei mudou quando os partidos já estavam com candidaturas mais definidas, não houve tempo para lidar com isso. Também precisamos destacar que às vezes sequer é o próprio candidato que preenche a ficha, mas o secretário", argumenta.

No Brasil, a confusão identitária é legítima, pois boa parte da sociedade viveu sob uma narrativa eurocêntrica, que alimentou por décadas uma ideia romântica da mistura de raças, como se o país fosse o paraiso da democracia racial. Se, antes, era parte do cotidiano ouvir frases orgulhosas sobre as origens europeias de uma determinada família — não importando o quão longínquas —, agora é cada vez mais comum dizer que existe sangue nordestino, negro ou indígena correndo nas veias.

Campos analisa a dificuldade em identificar fraudes nesse caso. "As comissões utilizadas nas universidades não se aplicam às eleições, porque estamos falando de cerca de 500 mil candidatos. É muita gente e envolveria problemas logísticos e uma série de questões legais. Uma solução mais viável seria colocar algum indicativo obrigatório no material de campanha das candidaturas beneficiadas, permitindo ao eleitor a identificação e, a partir disso, avaliar se merecem o voto."

Para Café, a questão racial no nosso país não é genética, é fenotípica. "Da mesma maneira, as cotas não atuam sob a ótica de ascendência. Não importa se sua avó era negra, porque se você é lida como uma pessoa branca pela sociedade, a polícia não vai atirar em você. Se alguém é inferiorizado por ser negro, alguém está ganhando por ser branco."

Entre as nuances complexas da definição de cor de alguém, o sociólogo atenta que estamos no meio de um processo de autoconhecimento e ruptura com a hegemonia branca. "O papel dos ativismos negros e feministas é fundamental, porque sem eles não existe democratização dos espaços de poder. É preciso de uma luta antirracista para superar. Mas ser negro também é uma construção política. Muita gente ainda não passou por isso, é vítima do colonialismo e do racismo."

Crise de identidade

Atualmente, o IBGE classifica o brasileiro como branco, amarelo, preto, pardo e indígena. A paleta de cinco cores define índices de desigualdade nas pesquisas — o que poderia deixar óbvio o racismo estrutural presente na sociedade. "Embora o colorismo precise de um debate mais amplo, isso acontece aqui por causa da política do branqueamento. O racismo estrutural já coloca o negro numa posição de inferioridade. Então não há meritocracia, há estratificação baseada na cor, a chamada 'pigmentocracia'", lembra Café.

Como numa escala de privilégios separados por cor, a escritora e ativista norte americana Alice Walker foi quem cunhou o termo colorismo, em 1982, para salientar os níveis de vantagens de uma pessoa negra de pele mais clara em relação a pessoas negras mais escuras. É um apontamento que revela os diferentes graus de discriminação, basicamente.

A divisão entre pardos e pretos é ancorada em índices de estatização da violência: na falta de acesso e oportunidades de estudo, trabalho, alimento, moradia e saneamento básico; e nos atentados à vida, com índices mais altos de mortalidade. Os grupos se assemelham nas dores cotidianas, nos meios de sobrevivência e resistência, assim como os indígenas, constantemente atacados.

Hoje, existe uma parte da militância que quer excluir o termo pardo a fim de esclarecer que, do preto claro ao retinto, todos são considerados negros. Em contrapartida, há também um movimento de defesa dos "mestiços", que coloca entre suas reivindicações o reconhecimento da comunidade miscigenada e do caboclo amazônico, e direitos iguais.

Com esse histórico problemático, muitas vezes o pardo não se enxerga em nenhuma classificação. É comum que mulheres pretas de pele clara relatem indagações como "você não é tão negra assim", vivendo à beira do dilema: branca demais para ser preta; preta demais para ser branca.

"A hierarquia de cor é uma das armadilhas que o racismo nos coloca. Quem fica nas condições intermediárias, os mais pardos ou os que têm traços de pessoas brancas, vive a ambiguidade do racismo. Ora podem ser valorizadas por suas características, ora sofrem discriminação. Isso traz uma reflexão e também reforça alguns estereótipos acerca da negritude e de outros conflitos que são estruturadas pelo racismo de dentro pra fora e de fora pra dentro", esclarece Flávia Rios, socióloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense.

Café endossa a preocupação. "Negro é um grupo social que engloba pretos e pardos a partir da luta de movimentos sociais na história do Brasil. Agora, se o colorismo é discutido de forma equivocada, gera efeito contrário entre entre pessoas já marginalizadas e sub-representadas. Não podemos criar um sectarismo dentro do movimento", finaliza Café.

Quem dá o tom nas escolhas políticas

No âmbito político, negros não chegam a compor 20% dos parlamentares. Em 2018, representaram apenas 4,3% dos eleitos para cargos nos poderes Executivo e Legislativo.

A mulher indígena é a menos presente na política institucional, seguida de pretas e pardas. Atualmente, representam apenas 5% das vereadoras eleitas no país. Neste ano, houve um aumento tímido nas candidaturas femininas em comparação com 2016: 1,3% para a câmara municipal e 0,1% para a prefeitura.

Rios reforça que os partidos filtram e escalonam aquelas pessoas que seriam mais elegíveis, impondo uma primeira barreira. "É neste momento que os negros perdem, tanto em financiamento quanto em demais recursos organizacionais, porque raramente estão no grupo central do partido, que irá investir na campanha, e tampouco possuem verba privada para aplicar".

A forma como funcionam os partidos ainda colabora com a desigualdade na competição. Os postulantes se veem engessados em um jogo de interesses e numa agenda que favorece o homem branco. Segundo dados da FGV Direito, receberam 58,5% das verbas destinadas à campanha na última eleição da Câmara dos Deputados. Em comparação, os homens negros receberam 18,1%. As mulheres negras ficaram com 6,7% dos recursos.

Para evitar que a subrepresentação se perpetue, Campos vê como alternativa a implementação de uma cota racial que exija um número mínimo obrigatório a candidaturas negras dentro dos partidos. "Hoje, se o partido não quiser lançar nenhum candidato negro, ele pode. A deputada federal Benedita da Silva (PT) visa a criação de cota mínima no projeto de Lei 4041/20, que vai além da distribuição igualitária do fundo eleitoral."

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