Carnaval de SP: um dia na rotina de preparação de uma musa da Vai-Vai
Lyllian Bragança é passista de escola de samba há 21 anos e desfila há 11 pela Vai-Vai, a agremiação que mais conquistou títulos no Carnaval de São Paulo. Faltando pouco menos de um mês para o desfile, a professora de dança, de 38 anos, enfrenta uma rotina ainda mais intensa para dar conta do trabalho, treino e ensaios.
Você pensa que é fácil ser passista? A gente dá o sangue, o pé, o corpo e a alma"
Tudo começa cedo, quando Lyllian já parte para o treino. Thyago Silveira é o personal trainer da musa e pega pesado - o trabalho funcional busca fortalecer a coluna e o joelho, para encarar os 65 minutos de desfile. O fôlego de uma verdadeira atleta é adquirido com a ajuda da capoeira.
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"Há um trabalho específico para fortalecimento muscular, que previne possíveis lesões tanto na avenida quanto no jogo da capoeira", afirma o personal.
Quem pensa que vida de musa termina na academia está enganado. Após o treino, começa a rotina profissional de Lyllian. Ela trabalha com eventos, tem um workshop sobre samba e participa de um coletivo de mulheres chamado Elas por Elas, onde ministra aulas de dança afro e samba de roda para cerca de 25 pessoas. Depois, ainda há os ensaios.
Passista de carteirinha
Quinta-feira, 19h, e Lyllian já está pronta para mais um ensaio. Com um sorriso no rosto, a musa da agremiação é cumprimentada a cada passo dado na Praça 14 Bis, na Bela Vista, centro de São Paulo. Ela entra no prédio onde funciona a sede social da Vai-Vai e aguarda, observando do alto, a movimentação de integrantes e público.
As baianas se organizam em um grande círculo e dão abertura para os casais de mestre-sala e porta-bandeira. A bateria afina os últimos detalhes e, no palco, os intérpretes começam o canto de exaltação da escola. Depois de alguns instantes, o ensaio começa. Lyllian sai correndo, desce as escadas e logo se posiciona entre duas alas. Neste ano, a musa vai desfilar pela primeira vez em um carro alegórico.
"É que eu sou da pele preta/Quilombo do povo/Sou Vai-Vai/Um privilégio que não é pra qualquer um/ Protegido e abençoado por Ogun", diz a letra do samba-enredo da escola, que neste ano levará para a avenida uma viagem no tempo de um africano contador de histórias.
Sem glamour
A vida de passista exige muita dedicação: "Respiro Carnaval o ano todo, é uma loucura", conta Lyllian.
"Você se doa e às vezes nem presta atenção no quanto você está se doando. 'Você comeu hoje?' Não, eu não comi. O que eu fiz? Eu fui dançar. Aí você para e pensa 'O que eu estou fazendo?'".
Segundo Lyllian, porém, a atividade puxada também é gratificante e vale cada perrengue que ela já enfrentou na avenida:
"Nunca caí na avenida, mas estava chovendo demais, então resolvi tirar a sandália. No momento em que eu tirei, acho que me senti muito segura, fui com tudo e caí com o joelho no chão", relembra.
Em outro episódio, a musa se recorda de um desfile em que teve que ir descalça do início ao fim: "Eu estava maravilhosa com minha sandália, eu tinha pintado com spray, glitter. Eu e minha mãe descemos do carro e o calçado abriu. Eu não tinha outra sandália".
Samba é resistência
"O samba é nosso lugar, é resistência. Hoje eu vejo que é trampolim para outras coisas, mas a gente tem que entender que o samba tem uma questão política, social, é uma ideologia, mesmo", diz a musa da Vai-Vai.
Para ela, é importante entender que as escolas de samba são fonte histórica inesgotável: "Principalmente a Vai-Vai, uma das mais antigas e atuantes no Carnaval, carrega ancestralidade, muita luta do povo preto, e essa luta continua. Por isso, inclusive, a garra e a vontade da comunidade são um diferencial".
Agressão na Vai-Vai
O recente episódio em que um integrante da Vai-Vai que foi flagrado agredindo uma mulher no ensaio técnico motivou uma discussão sobre violência no Carnaval. Para Lyllian Bragança, o caso deve servir de lição para todo mundo.
"A sociedade não aguenta mais esse tipo de condição. Eu acho que, como foi no Carnaval, as pessoas se assustaram porque o Carnaval não pode ser um ambiente agressivo. Mas, infelizmente, isso acontece em todos os lugares. A escola de samba tem um papel fundamental nesse sentido. De fazer valer o seu espaço e mostrar que não pode".
Após o vídeo cair na internet, a Vai-Vai divulgou um comunicado para incentivar denúncias de violência e repudiou o ocorrido, além de afastar o integrante da escola.
"Em 89 anos de história a mulher sempre foi protagonista em nossa agremiação. Lindos carnavais em exaltação a mulheres que brilham, Mãe Menininha do Gantois, Elis Regina, Lilian Gonçalves, Princesa Leopoldina", destacou a nota.
Preconceito e sexualização
Lyllian Bragança comenta que o machismo na sociedade e dentro das escolas de samba ainda é uma dificuldade enfrentada por passistas de todas as idades.
"Este ano colocaram meninas adolescentes na ala de passistas. E o povo começou a comentar que elas eram muito novas. Aí eu falei: 'Gente, a questão da sexualidade está na cabeça das pessoas, não na cabeça das meninas. Sabe por quê? Elas sambam desde pequenininhas. A gente tem que respeitar a história dessas crianças, elas nasceram ali. O que elas querem? Só sambar".
Para a musa da Vai Vai, é debatendo esses assuntos e levantando bandeiras que haverá mudança social: "O preconceito é ruim, mas o bom é saber que, ao longo desses anos, conseguimos melhorar a autoestima de meninas pretas e periféricas".
Ela ressalta que a posição de passista não é glamourosa, mas tem a função de quebrar esses preconceitos.
Para ser uma boa passista, é preciso samba, aliado a conhecimento histórico, para poder conseguir dar conta do preconceito social."
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