Quem é Renata Carvalho, a atriz transexual que ousou encarnar Jesus Cristo
A atriz transexual Renata Carvalho, 37 anos, jamais teve um ano como o de 2017. Combustível de uma comoção nacional que fagulhou nas redes sociais, sua peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” ganhou as manchetes ao ser censurada pela Justiça em Jundiaí e em Salvador. O motivo: o texto, adaptação da obra da britânica Jo Clifford, apresentava o calvário de um Jesus Cristo cujo crime-mor foi ter nascido transexual.
Explorada politicamente por grupos de direita, a reação conservadora acabou jogando luz sobre o trabalho de Renata, que este ano se uniu a outros artistas envolvidos em polêmicas —entre eles Wagner Schwartz, o homem nu da performance no MAM— para dar uma resposta artística aos episódios no espetáculo “Domínio Público”, um dos destaques do Festival de Curitiba.
A trajetória de Renata impressiona. Após começar no teatro ainda adolescente nos anos 1990, destacou-se na cena de Santos (SP) principalmente por papéis femininos em montagens de grandes nomes da dramaturgia mundial. Apesar dos prêmios recebidos e do reconhecimento da crítica, a dificuldade para encontrar papéis aos poucos se tornou um problema recorrente. E ela sabia o motivo.
Fora dos holofotes, Renata passou dez anos se dividindo entre a função diretora teatral e a de agente de prevenção e assistência a travestis e transexuais de São Paulo. Sem dinheiro nem perspectiva, acabou tendo de recorrer a trabalhos de maquiadora e cabelereira. Em um dos momentos mais nebulosos desse processo de afastamento, chegou a se prostituir.
Atualmente, a atriz surge como uma das vozes mais atuantes na militância LGBT e na pesquisa sobre o corpo trans no teatro. É fundadora do Coletivo T, voltado apenas a artistas transgêneros e participou da criação do Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans), que luta pela representatividade em espaços da arte. Em casa, ela possui uma biblioteca com mais de 60 títulos sobre a temática trans.
Seus próximos projetos incluem uma autobiografia, ainda sem previsão de lançamento, em que pretende explorar a história de um corpo visto como “estranho” e “desumano”, capaz de incomodar mesmo quem se diz livre de preconceitos. Como acabar com essa dissonância? “Só três coisas salvam a humanidade: educação, arte e esporte”, diz Renata.
UOL - Como você se sentiu no centro da algazarra provocada pela “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”?
Renata Carvalho - Na verdade, não me vi como centro de nada. Eu me vi, e ainda me vejo, como um corpo travesti que não deve circular em vários espaços. O que aconteceu não aconteceu contra a Renata, mas contra minha corporeidade travesti. Por isso que a representatividade é tão importante. A gente precisa humanizar e naturalizar a nossa presença e a nossa identidade.
A ideia da peça era comparar Cristo com a figura da travesti, no sentido de que ambos foram perseguidos e “crucificados” sem ter culpa. Por que esse recado chegou tão distorcido para tanta gente?
Os cristãos precisam ler a Bíblia. A maioria não leu. Você vê todo mundo com a Bíblia debaixo do braço, na página que o pastor ou cardeal mandaram ler, mas mesmo assim ninguém lê. A imensa maioria só escuta o que o pastor fala. Eu sou totalmente contra isso. Eu não falo o que eu escuto. Eu falo o que eu pesquiso.
“Domínio Público” é baseada em monólogos. Qual é a mensagem específica que a peça quer passar?
A de que o que aconteceu é cíclico. Que esse massacre ao espetáculo e as artes é histórico. Que a Igreja também está por trás disso. Estamos em um sistema patriarcal que exclui corpos dissidentes, que estão fora da heteronormatividade, da cisnormatividade. Precisamos falar disso. Se qualquer pessoa física tivesse 10% da história da igreja católica, essa pessoa poderia ser chamada de serial killer.
Você tem religião?
Eu tenho religiosidade. mas não tenho religião. Todas as religiões me excluem. Então eu não quero nenhuma delas.
As ameaças que sofro só tornam pública a exclusão da pessoa travesti. Quando a gente fala de gênero, há essa ideia de um ser superior. Nós não somos superiores. Somos todos iguais. A diferença é que todos somos seres humanos, e ser travesti me exclui de tudo. Precisamos conversar sobre isso.
Renata Carvalho
Quais são os principais problemas que você encontra para conseguir papéis?
Meu sonho é fazer cinema, mas eles me dão várias desculpas. Já perdi personagem travesti porque eu tinha peito. Já perdi papel em um filme, o que me doeu bastante, para um ator cisgênero porque o produtor-executivo não quis ligar o filme a um corpo travesti. Já perdi papel por não ter alma feminina, por não ter voz agradável, porque minha aparência é muito masculina, porque sou muito magra, muito velha.
Ou seja, cada hora, uma desculpa?
Sim. Como a que [a autora global] Glória Perez deu para colocar a Carol Duarte na novela [“A Força do Querer”]. Aí, no fim, ela tira a blusa dela e inventam um peito masculino para ela. Colocar uma trans ali é muito mais difícil para eles. É muito fácil engordar a Vera Holtz, envelhecer a Regina Duarte para fazer a Chiquinha Gonzaga, colocar peito no Rodrigo Santoro, botar prótese de mandíbula para aumentar o maxilar da Carolina Ferraz.
Outra coisa: os personagens trans geralmente são cheios de aptidões, mas nós, artistas trans, não temos aptidões suficientes para interpretá-los. Não seríamos capazes de humanizar uma personagem. Então, eles precisam chamar uma pessoa mais “apropriada”, mais “profissional”. Um artista cisgênero. Isso tem que acabar.