Bisneta de Tia Ciata mantém legado histórico do samba carioca na "Pequena África"
A cultura das tias baianas que migraram para terras cariocas - entre o final do século 19 e o início do século 20 - foi eternizada pela trajetória da mãe de santo Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata. Nascida em Santo Amaro da Purificação (BA), em 1854, ela fugiu para o Rio de Janeiro, aos 22 anos, por conta da perseguição religiosa na Bahia.
Na capital carioca, entre cultos religiosos e festas profanas, a mãe de santo e também quituteira acolheu o samba em seus braços, mais precisamente na Casa da Tia Ciata. A batucada, que era proibida pela polícia nos becos da cidade, foi embalada e fortalecida por ela, com direito a batismo: a música "Pelo Telefone", de Donga, foi concebida por lá. Nascia, então, o primeiro registro de canção do gênero, em novembro de 1916.
Um século depois, a história que gira em torno da matriarca baiana marca o Centenário do Samba e tem uma porta-voz ativa na atualidade: Gracy Mary Moreira. Bisneta de Ciata, Gracy criou Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata (ORTC), em 2007.
“A iniciativa surgiu através de um pedido que meu pai fez antes de morrer. Ele queria que nós continuássemos o legado da minha bisavó. Meu pai era o Bucy Moreira, músico e compositor, que também fazia parte da turma do Estácio. Ele conviveu com a avó (Ciata) até os 15 anos de idade, que foi quando, em 1924, ela fez a passagem para o mundo espiritual”, conta Gracy.
O desejo de Bucy foi atendido, e a entidade funciona há nove anos com sede fixa no centro do Rio. A ORTC é aberta à visitação e realiza - eventualmente - palestras e oficinas, além do passeio "Caminhos de Ciata", que faz um trajeto pela "Pequena África" - nome dado pelo artista plástico e sambista Heitor dos Prazeres (contemporâneo de Ciata) à área da zona portuária do Rio que concentrava na época comunidades remanescentes de quilombos e escravos alforriados.
“Nós estamos realmente resgatando isso, porque não é uma coisa simbólica, é algo concreto o que chamamos de 'Pequena África'. É histórico! Tem a Pedra do Sal - que é tombada; o Cais do Valongo, que é um porto onde desembarcavam os escravos africanos; o Memorial dos Pretos Novos, tudo fazendo parte desse contexto. Isso daqui é um circuito de herança africana. Então, não tem como não dizer que isso aqui não é a 'Pequena África'", defende a bisneta de Tia Ciata.
Uma história que atravessou o tempo
Mesmo sem ter tido contato com a bisavó, Gracy compartilha a história que conheceu pela oralidade ancestral: “A Tia Ciata veio para o Rio de Janeiro com a missão de divulgar o culto de matrizes africanas e propagar o samba, que nasceu no terreiro. Quando os africanos vieram ao Brasil, aportando na Bahia, o samba era chamado de semba e tinha um processo também maxixado, mas a transformação do samba aconteceu na Casa da Tia Ciata. Lá, os toques do candomblé se uniam à melodia dos músicos da época. A casa dela era frequentada por Villa Lobos, Pixinguinha, João da Baiana, Donga. Ali nasceu o samba que conhecemos hoje”.
Filha de Oxum como Ciata, Gracy aborda também as religiões afro-brasileiras dentro dos projetos da ORTC. “Nos 'Caminhos de Ciata', por exemplo, nós exploramos tanto a parte histórica quanto a religiosidade e a manutenção dela até os dias de hoje. No ano passado, nós ganhamos o prêmio afro-fluminense, justamente com recorte da celebração das baianas de acarajé", conta.
A propagação da cultura das baianas para além do terreiro, aliás, começou com a Tia Ciata. Segundo Gracy, ela foi a primeira mulher a vestir roupa de baiana e colocar o seu tabuleiro na rua com quitutes. "Por isso que esse nome foi importado, pois, antes disso, era crioula de tabuleiro, crioula de venda, e não baiana, como conhecemos hoje”.
A cultura das tias baianas
As tias baianas tinham um papel de acolhimento dentro da “Pequena África”. Além de Ciata, que foi eternizada pela história, sendo citada em obras de escritores como Manoel Bandeira e Mário de Andrade, outras matriarcas circulavam por lá. “Tia Bibiana, Tia Percilhiana, Tia Mônica, Tia Carmem Simbuca, Tia Amélia, dentre outras eram figuras marcantes porque elas conseguiam agregar na casa delas as pessoas para provar uma boa comida, como carajé, quindim, cocada, lelê, abará, caruru, vatapá, além de fazer um samba, claro”, diz Gracy.
O maior legado deixado por essas lendárias senhoras é a existência obrigatória, até hoje, da ala de baianas nas escolas de samba do Rio de Janeiro e do Brasil, uma referência à importância delas para a organização do Carnaval carioca.
A matriz do Carnaval
A Casa de Tia Ciata teve outra importante contribuição para o Carnaval do Rio. Isso porque o baiano Hilário Jovino, frequentador do local, criou, em 1893, o rancho carnavalesco Rei de Ouros. "Já existiam outros ranchos na cidade que faziam a folia no Dia de Reis. O Rei de Ouros, no entanto, foi o primeiro a desfilar no período do Carnaval, hábito que já existia em Salvador", explica Gracy.
Além disso, Jovino decidiu sozinho substituir a tradicional Guarda de Honra que protegia a Porta Estandarte. Surgia, então, o primeiro Mestre Sala, o guardião da bandeira de um rancho, bloco ou agremiação. O folião mudaria para sempre a história da festa popular.
Guardiã dessa e de outras memórias acerca do samba e da afro-brasilidade, Gracy Mary ressalta: "A nossa missão é dar continuidade ao legado de Tia Ciata, fazendo que as pessoas tenham o conhecimento do que é a cultura, a valorização do negro e das nossas referências dentro da religião de matrizes africanas e o samba. Nós continuamos a fazer esse trabalho com grande estímulo".
ORTC - Organização Remanescentes de Tia Ciata
Endereço: Rua Camerino, 5 - Centro, Rio de Janeiro (RJ)
Horário de funcionamento: de terça a quinta, das 14h às 17h; sexta das 14h às 18h30 e horários agendados
* Para informações sobre eventos e agendamentos, acesse o site.
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