Chula de São Braz herdou samba secular que surgiu com os escravos na Bahia
A música toca a história de um povo. Na Vila de São Braz, quilombo remanescente pertencente ao município de Santo Amaro da Purificação (BA), um grupo carrega, oficialmente desde 1995, uma herança musical secular deixada pelos africanos vindos à Bahia para o trabalho escravo em engenhos coloniais: a chula, um samba que nasceu na escravidão. Ou, nas palavras do sambador Agnaldo Nascimento, 43, que dá voz ao grupo Samba Chula de São Braz, "um canto de labor e de dor que os negros escravos cantavam no momento de trabalho duro".
Estima-se que a vila santo-amarense date do final do século 17. De lá pra cá, a chula - que é uma modalidade do samba de roda do Recôncavo baiano - não se perdeu entre as gerações quilombolas do local. É praticamente uma regra que os integrantes digam que herdaram a chula de algum membro da família: "Meu pai cantava chula com seus irmãos", "minha avó tocava prato desde que eu nasci", "meu avô dedilhava uma viola como ninguém".
Dos tempos do Brasil colônia às décadas atuais, a chula da Bahia se adaptou à vida dos moradores, e as letras passaram a versar sobre o cotidiano rural dos trabalhadores no mar, na roça ou nos canaviais, sobre o amor simples de homens dedicados às mulheres e também sobre parábolas e mensagens religiosas.
"Os mais velhos foram morrendo e nós fomos levando para frente a tradição original que nos foi ensinada", afirma o pescador e percussionista Mário Peres, 60 anos. Veterano do grupo Samba Chula de São Braz, o baiano é um representante fiel dos moradores do povoado. Pescador e sambador, ele simboliza a fama de "a vila dos mariscos e da chula" de São Braz.
A vila tem no braço de mar localizado em seu território uma das maiores fontes de renda. É por meio do sustento da pesca daquelas águas que Mário e a maioria dos habitantes proveem suas famílias.
Bendito samba
Com torço vermelho, bata azul cintilante, saia rodada longa branca, brincos pendurados, colares e contas coloridas, a baiana Raimunda Nonato Souza, 64, está pronta para entrar no gingado do samba de roda do grupo Chula de São Braz.
Também pescadora, atualmente aposentada, Raimunda conta que o samba chula trouxe leveza e alegria para a sua vida penosa. "Eu sou mãe de 7 filhos. Tenho meu marido que é deficiente renal e também cadeirante. Como pescadora aposentada, foi muito sofrimento para criar meus filhos. Só com muita raça e muita força pra vencer. Vivia solitária, mas quando tinha, assim, um 'movimentozinho', eu estava ali junto", conta a sambadeira, que aprendeu a tocar prato e a cantar com a mãe.
Quem ouve a voz solta e vê o sorriso aberto de Zélia Maria Paiva Souza também não imagina o sofrimento escondido sob os panos de baiana. "Eu era mulher muito sofrida mesmo, era uma mulher caseira, não saía de casa. Hoje me sinto uma mulher feliz, liberta. Tive depressão, fiquei doente e, depois do samba, fiquei boa e não quero mais perder samba nenhum. Eu joguei a pressão para bem longe e agora é só alegria", revela.
O samba chula é um ritual musical
Quando o Samba Chula de São Braz se junta para tocar, a chula segue uma fórmula de respeito à arte trazida pelos ancestrais. "Não temos nada o que inventar, apenas manter a tradição original que nos foi ensinada", afirma Agnaldo. "Segurar o que nos veio de original, na natureza do samba mesmo", diz Mário.
O gritador, cantor que puxa a chula, abre a roda com sua cantoria inicial. Nessa parte, a chula tem uma métrica de versos específica: possui de uma a quatro frases melódicas que são seguidas por um estribilho cantadas em coro. Nesse momento, as vozes femininas também fazem parte da performance. Em seguida, a letra da chula pode - ou não - seguir com relativos, que são respostas que comentam a narrativa da chula.
O próximo passo vem com a beleza do "miudinho" (um sapatear sem tirar os pés do chão) das baianas. Quando o gritador cessa o canto e os músicos trabalham na parte instrumental da música, é hora de as baianas dançarem. Descalças ou com sandálias, Raimunda e Zélia Maria recebem a vez para dançar, deslizando com magia em frente aos integrantes.
A entrada triunfal de cada uma delas é feita separadamente. Quando Raimunda entra, Zélia aguarda o próximo intervalo instrumental da apresentação para sambar.
O grande sonho mora ao lado
- BOL visita rodas de samba de comunidades de São Paulo; veja
- Neta de Cartola, Nilcemar Nogueira critica estrutura comercial das escolas de samba
- Pedra do Sal, no Rio, é palco de uma roda de samba marcada pela resistência
- "Samba era coisa de negro, éramos reprimidos", relembra Carlão, da Peruche
- Osvaldinho da Cuíca defende o samba de SP: "Aqui não é o túmulo"
- Cacique de Ramos: Fundo de Quintal recebe sambistas renomados nas "Quartas Nobres"
- "O samba tem mais de 100 anos, mas é justo comemorar 2016", diz Martinho
- O que é que a Bahia tem? Tem Dalva Damiana de Freitas, "Doutora do samba"!
- Entre na roda e saiba onde curtir um samba autêntico em SP
- Precursora feminina, Leci Brandão exalta o samba como missão social