"Voucher da saúde" defendido por Guedes é a privatização do SUS?
Depois de cogitar a privatização das UBSs (Unidades Básicas de Saúde) em outubro passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, recomendou recentemente a distribuição pelo governo federal de um "voucher da saúde", uma espécie de cupom com o qual o brasileiro pagaria por atendimento médico na rede privada.
Guedes já havia tratado do tema no Fórum Econômico Mundial de 2020, em Davos, quando falou em um "gigantesco" programa de distribuição de vouchers, mas para a educação infantil brasileira. Criticado, voltou raras vezes ao assunto, como no último 27 de abril, quando foi gravado sugerindo a adoção do vale na saúde pública.
Vamos ter que fazer na saúde igual se fez no auxílio emergencial. Pobre está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir ao [Hospital Albert] Einstein? Vai ao Einstein. Quer ir ao SUS, pode usar seu voucher onde quiser. Não tem gestão na saúde pública.
Paulo Guedes, ministro da Economia
Antes da pandemia, sete em cada dez brasileiros, mais de 150 milhões de pessoas, dependiam exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) para tratamento, segundo dados de 2019 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Mas e se a ideia vingar, todo brasileiro será atendido no Einstein, como sugeriu o ministro? O que acontecerá ao SUS?
O que é o voucher da saúde?
O voucher da saúde é uma espécie de vale, ou um cheque entregue pela União com um crédito garantido aos que desejam pagar por serviços privados de saúde. Questionado sobre o cálculo para definir o valor do voucher que cada brasileiro teria direito, o Ministério da Saúde respondeu que "a orientação é procurar o Ministério da Economia para os questionamentos da demanda".
Procurada, a pasta afirmou que "o Ministério da Economia não vai comentar o assunto".
"Qual é a proposta? Não sabemos", lamenta a pesquisadora Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
"Se for dividir o orçamento do ministério (R$ 125,8 bilhões) em vouchers, a gente vai jogar dinheiro fora porque o SUS barateia o serviço por ser o dono da própria rede e eliminar intermediários."
O que aconteceria com os hospitais do SUS?
Com a popularização do "bolsa-saúde", como alguns chamam o vale, o Estado poderia abrir mão de sua estrutura de atendimento em especialidades médicas já cobertas pelo voucher.
"Uma pessoa minimamente instruída não pode propor um negócio desse", diz o médico Walter Cintra, coordenador do curso de Gestão de Saúde na FGV (Fundação Getulio Vargas).
"Não faz sentido no Brasil, com um sistema público universal, ficar discutindo assistência à saúde através de voucher."
Vai dar para se tratar no Einstein?
Mesmo sem conhecerem os detalhes da ideia de Guedes, os especialistas duvidam que o brasileiro médio conseguiria se tratar em um hospital privado de alto custo, como o exemplo dado por Guedes.
Para a especialista do Idec, o voucher "é o mais precário sistema para se pagar por saúde", e listou algumas razões:
1 - No voucher não há o chamado compartilhamento de risco: "O Banco Mundial recomenda o sistema de mutualismo, como é o SUS ou um sistema de seguro saúde", diz Ana. "O dinheiro de todo esse grupo é acionado quando um único de seus membros é diagnosticado com câncer, por exemplo."
Já o voucher não tem esse compartilhamento de risco. A pessoa arca sozinha, é um risco individual. Se o tratamento for muito caro e o voucher não cobrir, o problema é dela
Ana Carolina Navarrete, do Idec
2 - Os convênios médicos ou o SUS podem negociar o preço do serviço de saúde, "mas um consumidor sozinho consegue negociar com um hospital?", questiona.
3 - No sistema de voucher, "a pessoa só vai procurar médico quando estiver doente porque não haverá sistema preventivo".
O professor da FGV concorda. Ele afirma que o paciente não usaria o cupom em consultas para prevenção de doenças, um papel que hoje cabe ao SUS por meio de UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e agentes de saúde.
"Sem o acompanhamento da atenção básica ao longo da vida, o paciente terá um consumo ineficiente do voucher e o serviço será ineficaz", diz Cintra.
Será a privatização do SUS?
Em outubro de 2020, Guedes disse que a privatização do SUS jamais esteve sob análise da equipe econômica, que suas sugestões são para utilizar capital privado na finalização de obras de unidades de saúde e, em contrapartida, oferecer aos usuários um voucher para atendimento médico na rede privada.
Quem é maluco de acabar com acesso universal? A luta é o contrário, como aumentar o acesso universal? Como dar um voucher à saúde, à educação, para que as pessoas possam procurar escolas, porque o setor público sozinho não tem a capacidade financeira de atender todo mundo
Paulo Guedes, Ministro da Economia
"Não são iniciativas que apostam no setor público como solução", diz Navarrete. "Eles privilegiam o pior dos modelos privados, o do desperdício de recursos e da baixa capacidade de prevenir doenças."
Quem já fez e como foi?
Como o voucher da saúde não existe em muitas regiões do mundo, há poucas pesquisas sobre o tema. Uma das mais importantes foi a revisão pela Universidade de Londres de 24 estudos de 16 programas de vouchers em países em desenvolvimento.
O instrumento foi usado como paliativo em países sem um sistema robusto de saúde pública como Bangladesh, Índia, Moçambique, Uganda e Nicarágua. O objetivo era oferecer algum serviço de saúde a quem não tinha opção.
A conclusão foi que a qualidade do serviço prestado não melhorou e, pior, ela não atingiu o público-alvo.
Concluiu-se que há modestas evidências indicando que os programas de vouchers são capazes de ofertar bens de saúde a populações específicas
Trecho da pesquisa
Para a categoria "qualidade de resultados", as evidências de três programas de vouchers, seis estudos e 13 variáveis de resultados "encontraram evidências modestas de que os vouchers impactaram em alguma dimensão na qualidade dos serviços prestados".
E no Chile?
O Chile dos anos 1980 adotou o sistema de voucher na educação. Depois da mudança, diz relatório da Universidade do Colorado, as escolas públicas chilenas em regiões empobrecidas passaram a disputar dinheiro público com as unidades privadas e com as estatais localizadas em regiões nobres, reforçando a disparidade educacional entre os estratos sociais.