Lei de Cotas incentivou a migração de alunos para o ensino médio público
Criada em 2012 e prestes a passar por processo de revisão em 2022, a Lei de Cotas do ensino superior (Lei nº 12.711/2012) leva estudantes que fizeram ensino fundamental em escolas privadas a optarem em maior proporção pelo ensino médio público, mostra estudo.
Segundo a pesquisa, esse aumento ganhou intensidade ao longo dos anos, após a aprovação da lei: foi de 15% em 2013, 22% em 2014 e 34% em 2015, quando comparado à mesma movimentação de alunos antes da regra de reserva de vagas.
Dessa maneira, os alunos buscam se beneficiar da lei, que reservou 50% das vagas em todos os cursos de instituições federais de ensino superior para alunos que estudaram os três anos do ensino médio em escola pública. A regra estabelece ainda subcotas, por critérios de raça e renda.
Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, não são estudantes ricos querendo levar vantagem indevida que fazem essa opção. Conforme o levantamento da economista Ursula Mello, pesquisadora da Barcelona Graduate School of Economics, na Espanha, o movimento é mais expressivo entre alunos pretos, pardos e indígenas e para os que vêm de escolas privadas de menor nível socioeconômico.
Conforme a pesquisadora, o pioneirismo do estudo está em confirmar, com base em dados públicos, algo que os estudiosos da Lei de Cotas já intuíam: que a mudança de regra que passou a vigorar em 2012 não afeta apenas a escolha de universidades pelos alunos, mas molda também suas decisões com relação a etapas anteriores da educação.
Para Mello, os achados da pesquisa podem contribuir para que, no processo de revisão em 2022, a Lei de Cotas possa se tornar ainda mais inclusiva.
Lei cria incentivo para aluno cursar ensino médio público
Para realizar o estudo, a economista utiliza dados do Censo Escolar do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) de 2008 a 2015.
Olhando para os estudantes do último ano do ensino fundamental, o atual 9° ano, a pesquisadora cruza esses dados com as informações desses mesmos alunos no ano seguinte, o 1° ano do ensino médio.
"Ao estabelecer uma reserva de 50% das vagas para alunos que estudaram em escola pública durante todo o ensino médio, a Lei de Cotas cria um incentivo para que os jovens estudem em escola pública, então fui estudar se isso leva a uma escolha maior por esse tipo de escola", explica Mello.
"Eu observo se o aluno do 9° ano de escola privada seguiu no ensino pago ou mudou para uma escola pública."
Pretos, pardos e pobres fazem mais esse tipo de movimentação
Segundo a economista, a pesquisa confirmou que, de fato, a Lei de Cotas induz o aumento da migração de alunos do sistema privado para o público, na transição do ensino fundamental para o ensino médio.
"Na média, de 2012 a 2015, esse aumento é de 29%, quando comparado ao período entre 2008 e 2011, antes da adoção da Lei de Cotas. Eu comparo alunos de uma mesma escola, antes e depois da lei."
Para alunos brancos, o aumento é de 24%, enquanto para pretos, pardos e indígenas, a alta é de 33%.
E não há aumento de movimento para os alunos das escolas de mais alto nível socioeconômico do setor privado (as top 25% mais ricas). O efeito é concentrado nas escolas de mais baixo nível socioeconômico, com aumento de 38%.
"Havia muita preocupação de que fossem alunos ricos se mudando para a escola pública para pegar as vagas das cotas. E não é isso que o estudo mostra", diz Mello.
"São alunos possivelmente mais ricos que a média da escola pública, mas não são os alunos mais ricos do Brasil. São estudantes de famílias que provavelmente faziam grande esforço para manter seus filhos em escolas privadas no ensino fundamental e que acabam decidindo colocar os filhos em escolas públicas no ensino médio porque há um ganho nessa escolha."
Efeito das cotas é isolado de outros
Um outro resultado encontrado pela pesquisadora é que esse movimento dos alunos rumo ao ensino médio público tem provocado o fechamento de algumas escolas privadas.
"Principalmente escolas menores acabam fechando. Então a Lei de Cotas promove uma realocação, algumas escolas privadas acabam saindo do mercado, provavelmente as de menor nível socioeconômico."
Para realizar o estudo, a economista usa uma técnica chamada de "diferenças em diferenças", que permite isolar o efeito das cotas como motivo dessa mudança de comportamento dos alunos.
A técnica possibilita, por exemplo, isolar o que foi o efeito da crise econômica iniciada em 2014 nessa mudança dos alunos da escola privada para a pública ou o impacto da alteração da pirâmide etária do Brasil, já que o envelhecimento gradual da população tem diminuído o número de jovens em idade escolar.
Revisão da lei em 2022
Para Mello, o resultado do estudo pode ajudar na revisão da Lei de Cotas, prevista para acontecer após dez anos de sua aprovação, em 2022.
"É muito importante entender que a Lei de Cotas não tem efeitos só para a graduação, mas influi também em etapas muito anteriores da trajetória escolar dos alunos", afirma.
A pesquisadora destaca que a lei foi fundamental para mudar o perfil das instituições federais de ensino superior, com presença muito maior de alunos vindos da escola pública; de negros, pardos e indígenas e de estudantes de renda mais baixa.
Segundo dados publicados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no ano passado, pela primeira vez, em 2018, pretos e pardos passaram a ser maioria nas universidades públicas, representando 50,3% dos estudantes.
"Agora precisamos ver o que vai ser daqui para frente", defende Mello. "Para que essas conquistas sejam mantidas, em primeiro lugar, é muito importante que a Lei de Cotas continue, que seja renovada pelo Congresso."
A partir disso, diz a pesquisadora, será preciso pensar como sociedade o que se quer da lei daqui para frente.
"Se a ideia for democratizar ainda mais o acesso à universidade, o que eu penso que é desejável, pode-se pensar em mudanças na lei", sugere a economista.
Mudanças possíveis
Segundo Mello, a reserva de 50% das vagas para alunos da escola pública parece ser um bom critério, pois cria incentivos aos alunos dessas escolas para que eles estudem mais, estimula a valorização da escola pública, além de ser uma regra de fácil gestão para os gestores universitários, pois o critério de renda da Lei de Cotas é mais passível de fraude.
"É um critério que é bom e funciona, mas se queremos democratizar mais a universidade, uma opção, por exemplo, seria expandi-lo, exigindo também que o segundo ciclo do fundamental seja cursado em escola pública."
Outra possiblidade de mudança, sugere a pesquisadora, seria alterar o critério de renda.
Pela lei, no mínimo 50% das vagas nas instituições de ensino superior federal devem ser destinadas a alunos que estudaram em escolas públicas durante todo o ensino médio.
Dentro desse contingente, metade das vagas é reservada para estudantes com renda mensal per capita até 1,5 salário mínimo e uma parcela para pretos, pardos e indígenas, proporcional à presença desses grupos na unidade da federação, segundo o Censo mais recente.
"Esse critério de renda é utilizado em outros programas sociais, mas ele é muito abrangente. Ele abarca cerca de 70% da população que presta o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio, principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil)", diz Mello.
"Acaba sendo um critério que não atinge a parcela mais pobre da população, por isso não funciona direito. Então se quisermos democratizar mais, poderia ser estabelecido um limite de renda inferior", opina.