Sem internet, estudantes de favelas não conseguem se preparar para o Enem
Desde o início da pandemia tem sido assim: Luiz Menezes, 19, acorda e tenta se conectar ao wi-fi da Associação de Moradores da Nova Holanda, favela do Complexo da Maré. Os poucos minutos aos quais tem acesso à internet do vizinho são fundamentais para que consiga fazer download do material didático disponibilizado pelo pré-vestibular comunitário. Mas, quando a conexão não funciona, Luiz sabe que não terá como estudar por mais um dia.
Sem acesso próprio à internet, o sonho de chegar ao ensino superior se torna ainda mais distante no horizonte dele e de outros vestibulandos de favelas do Rio de Janeiro. As dificuldades impostas pela exclusão digital se acentuaram desde o início da quarentena, quando as aulas presenciais foram suspensas.
Cabe aos jovens sem internet recorrer a livros e apostilas, sem ter como tirar dúvidas com professores em salas de aula ou em conferências pela internet oferecidas a alunos de pré-vestibulares privados.
Às vezes, a internet da associação de moradores falha e perco a continuidade das leituras. Às vezes, a velocidade não é suficiente para assistir a uma videoaula. Sigo estudando por materiais aleatórios, mas com dificuldades. Tenho tentado não parar, mas às vezes bate a desmotivação. Não ter internet nesse momento em que não podemos sair de casa é um obstáculo enorme
Luiz Menezes, vestibulando morador da Maré
O estudante, que tentará uma vaga no curso de Ciências Sociais de uma universidade pública, admite apreensão em relação à data do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Originalmente marcado para os dias 1º e 8 de novembro, o exame regular não deve ser remarcado, de acordo com o ministro da Educação, Abraham Weintraub —apesar dos impactos da pandemia na vida dos estudantes menos abastados.
Sobre as perspectivas para a prova, caso a data não seja remarcada, Luiz deixa escapar a falta de esperança. "Nós, que moramos em favelas, já saímos atrás nessa corrida. Não sei como vai ser", desabafa.
A pouco mais de 15 km do Complexo da Maré, o também estudante Pablo Henrique Saldanha, 18, vive agonia similar na favela da Vila São Luiz, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Sem ter um computador e com acesso restrito à internet, ele usa o único smartphone da família para entrar na plataforma virtual criada pela Secretaria Estadual de Educação e não perder as matérias do último ano do ensino médio.
Com o mesmo aparelho, ele tenta assistir às aulas do pré-vestibular comunitário. No ambiente virtual criado pelo governo para que os alunos não percam conteúdos didáticos durante a pandemia, Pablo encontra dificuldades. Ele sonha cursar Direito em uma universidade federal.
"O meu sinal não é wi-fi, então não consigo baixar os arquivos. Quase sempre os materiais chegam atrasados. Além disso, deixamos de ter aulas, ao vivo ou gravadas, em pleno ano de vestibular. A escola nos fornece uma série de PDFs e vídeos que não são dos nossos professores", relata.
É como se tivéssemos perdido o vínculo com a nossa formação, com os estudos
Pablo Henrique Saldanha, estudante e morador de Caxias
Solidariedade: arma contra desigualdade
Nas mãos de Pablo, o celular usado para os estudos se tornou uma ferramenta de solidariedade: durante a quarentena, ele e os colegas de turma criaram um grupo no Whastapp para debater as disciplinas e tirar as dúvidas entre si. Os que não têm internet em casa se deslocam até a porta da casa de um colega que tenha wi-fi e acessam a rede, baixando o conteúdo daquele dia, sem quebrar os protocolos de distanciamento social.
Colega de Pablo no Pré-vestibular Comunitário Mais Nós, que oferece aulas gratuitas a estudantes da Baixada Fluminense, Pedro Vinícius Gomes, 26, tenta ingressar no ensino superior pela terceira vez.
Neste ano, ele achou que conseguiria se dedicar somente aos estudos para cursar Jornalismo em uma universidade pública. A pandemia do coronavírus, porém, fez com que a necessidade de trazer dinheiro e comida para dentro de casa fosse ainda maior, frustrando os planos traçados.
Com a mãe cumprindo isolamento social, o jovem precisa furar a quarentena para fazer "bicos" como pedreiro e jardineiro na favela do Centenário, também em Duque de Caxias. No tempo que sobra, ele corre atrás de sinal de internet para ter acesso aos materiais disponibilizados pelos amigos.
Pobre sem formação consegue fazer home office, por acaso? Saio para 'ganhar o pão', tomando os cuidados de prevenção. Quando não estou trabalhando, peço a senha do wi-fi dos amigos, perturbo o pessoal no grupo Whastapp do curso [pré-vestibular] e estudo
Pedro Vinícius Gomes, vestibulando morador de Caxias
"É diferente das aulas presenciais, perde-se em interação, muitas vezes não conseguimos tirar dúvidas. Estudar sem internet é como viver na favela: a gente vai se virando, dando um jeito, batalhando", compara.
O isolamento e os reflexos da falta de acesso à internet, na opinião dele, expõem o problema estrutural ao qual foi submetido desde o início da sua vida escolar.
"O jovem periférico não sai do ensino médio e pode ir direto para o ensino superior. Nem sempre o ensino médio desse jovem é aproveitado plenamente. Às vezes, ele até quer seguir estudando, mas precisa colocar comida na mesa, como foi o meu caso. A falta de internet nesse momento de necessidade acadêmica também mostra o processo de dificuldades de acesso à informação do favelado. E, como li dia desses: 'informação é remédio contra a pandemia'", conta.
As dificuldades de conexão, de fato, estão longe de ser os únicos obstáculos no caminho desses estudantes, rumo ao vestibular.
Nem sempre temos professores em sala de aula. Muitas vezes não podemos estudar por questões de segurança, tiroteios que acontecem nas comunidades em que moramos. Nesse momento, trabalho numa farmácia, com atendimento. Diariamente, quando vou estudar, me flagro pensando: 'Será que estou contaminado?'. É difícil focar, quando o isolamento é impossível
João Ventura, morador da favela do Morro Azul, em Caxias
Todos os jovens ouvidos pela reportagem relatam um problema em comum: além da falta de internet, há carência de um dispositivo adequado para os estudos online. Pablo e os amigos sequer têm um computador e dependem de smartphones, muitas vezes compartilhados com outros membros da família, como único recurso.
Eles fazem parte de uma estatística retratada pela pesquisa TIC Domicílios, lançada no ano passado. O levantamento revelou que 48% dos jovens das classes D e E do país têm acesso à internet.
Desse total, 85% dos usuários acessam a rede exclusivamente pelo celular; 2%, apenas pelo computador, e 13% se conectam tanto pelo aparelho móvel quanto pelo computador. O fato de "possuir acesso", porém, não garante a qualidade ou a estabilidade do sinal encontrado.
Professores se desdobram para levá-los à universidade
Na outra ponta da luta para fazer com que jovens de favelas e regiões pouco assistidas cheguem ao ensino superior, estão professores que têm assumido funções que vão além do dever de transmitir conhecimento acadêmico.
Sem ter como ministrar aulas presenciais, o coordenador do pré-vestibular comunitário Mais Nós, Wesley Teixeira, conta que tem se desdobrado para fazer com que os seus alunos tenham mínimas condições de estudo.
Nesse momento, a nossa preocupação é a de arrecadar alimentos e levar para esses alunos. Ninguém estuda faminto e muitas dessas famílias têm sobrevivido em situações precárias. Estudar em casa está longe de ser fácil. Vários dos alunos moram com famílias inteiras em casas de cômodo. Como ler um livro nessas condições, se não há nem uma mesa adequada, se não há luz elétrica?
Wesley Teixeira, do pré-vestibular comunitário Mais Nós
Wesley ressalta que nem mesmo os professores estão preparados para este cenário, em que são obrigados a ministrar conteúdos de maneira remota.
"Estamos fazendo o possível para diminuir os prejuízos. Encaminhamos textos, PDFs, tentamos tirar dúvidas por Whatsapp, mas aula online nenhuma substitui a sala de aula. Os próprios professores não estão preparados para esse cenário em que vemos o aprofundamento das desigualdades na educação. Está claro que o ensino à distância não é para todos. Em uma sociedade hierarquizada como a nossa, se você nega o direito à educação, você nega a existência dessa pessoa", completa.
Já o professor Laerte Breno, que dá aulas no pré-vestibular comunitário Unifavela, no Complexo da Maré, ressalta que o formato de ingresso no ensino superior provoca uma mentalidade que precisa ser quebrada.
Muitos pré-vestibulares comerciais passam a noção de competição, de que os estudantes são adversários uns dos outros. Esse momento prova isso: coletividade é fundamental
Laerte Breno, professor do pré-vestibular Unifavela
Laerte ressalta a necessidade de uma metodologia específica para esses estudantes.
Precisamos também orientá-los sobre o formato da prova do Enem, que muitos deles sequer conhecem. Eles prestam vestibular, apesar de todas as adversidades. A pandemia só acentua esses problemas e a necessidade de democratização do acesso à internet
O professor aponta soluções para o principal problema enfrentado anualmente pelos pré-vestibulares comunitários: os índices de evasão escolar.
"Não nos cabe colocar os problemas, mas sim, evitar que eles desistam do sonho. Montamos as grades de estudos, nos mantemos em contato para que ninguém deixe as leituras, tentamos tirar dúvidas. Desistir, quando não há troca de sonhos e conhecimento é muito fácil. Estamos aqui para dificultar o caminho de quem quer abrir mão do sonho universitário", conclui.