Brasileiros acham objetos de 2,4 mi de anos que podem rever evolução humana
Resumo da notícia
- Artefatos de pedra lascada de 2,4 milhões de anos foram achadas fora da África
- Descoberta sugere que saída dos Homines do continente antes do imaginado
- Achava-se que Homo erectus deixou primeira a África; agora, pode ser o Homo habilis
- Brasileiro da equipe acha que comunidade internacional talvez veja com ceticismo
Pesquisadores brasileiros e italianos anunciaram nesta quinta-feira (4) uma descoberta que pode mudar o que se sabe até o momento sobre a evolução humana. Ferramentas de pedra lascada datadas de 2,4 milhões de anos foram achadas fora da África, o que sugere que a saída dos primeiros representantes do nosso gênero (Homo) do continente aconteceu bem antes do que se imaginava.
Segundo a equipe, que terá o estudo publicado pela revista científica "Quaternary Science Reviews" neste sábado (6), os artefatos são os mais antigos objetos dentro dessa categoria já encontrados fora da África.
A descoberta aconteceu em um sítio arqueológico no vale do rio Zarka, no norte da Jordânia, e até então acreditava-se que os primeiros humanos teriam saído da África há 1,9 milhão de anos, tendo chegado ao Cáucaso --região da Europa oriental entre os mares Negro e Cáspio-- há cerca de 1,8 milhão de anos (datação mais antiga de um hominídeo fora da África). Este último dado teria vindo de um dos cinco crânios, com características bem distintas, achados na jazida de Dmanisi, na República da Geórgia em 2005, e que levantaram um verdadeiro debate sobre a classificação arqueológica das descobertas (explicamos melhor a seguir).
Houve ainda em 2012 outra descoberta importante no Quênia: um crânio quase completo e duas mandíbulas, que pertenceram a três indivíduos diferentes que viveram há aproximadamente 1,9 milhão de anos, durante o período Paleolítico Inferior.
Para Walter Neves, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo), importante arqueólogo brasileiro e um dos responsáveis pela descoberta, nem ele acreditou quando os resultados do estudo saíram.
"Para nós foi surpreendente. Estou muito feliz e realizado. A gente não imaginava que para uma primeira saída a gente fosse conseguir resultados espetaculares", ressaltou.
O trabalho da equipe de cientistas ocorreu entre 2013 e 2015 e foi financiado majoritariamente pela Fapesp e pela entidade Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, de Nova York. Assinam ainda o estudo Fabio Parenti (Universidade Federal do Paraná e Instituto Italiano di Paleontologia Umana); Giancarlo Scardia (Universidade Estadual Paulista); Astolfo Araújo (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP); Daniel P. Miggins (Oregon State University, EUA); e Axel Gerdes (Goethe University, Alemanha).
Para Claudia Pleins, arqueóloga do departamento de história da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que não tem ligação com a pesquisa, a descoberta é bem relevante. O fato de pesquisas assim receberem mais investimentos tem contribuído bastante para que estudos na área se tornem promissores.
"Desde os anos 60 a gente tinha toda uma teoria de que todos os humanos teriam saído primeiro da África. Os brasileiros foram a uma nova área que não se tinha pesquisa e encontraram esse tipo de artefato. Com mais gente trabalhando, vamos encontrar mais vestígios. É relevante, sim. Se eles fizeram a datação, não tem algo a ser contestado", ressaltou. "Quanto mais dados existirem sobre as rochas encontradas no sítio da Jordânia, mais a hipótese dos pesquisadores pode ser consolidada."
Ela também acredita que a contestação à pesquisa, pela forma como foi realizada, não será tão grande assim. Ela compara ao caso de Luzia, "primeira mulher" das Américas que teve seu crânio encontrado em MG nos anos 70. Luzia teve sua datação revista por Walter Neves --sim, o mesmo antropólogo desta descoberta recente-- e suas conclusões foram contestadas pela comunidade científica.
O problema da Luzia é que quando ele mediu o crânio dela, fez uma hipótese de ocupação baseado na medida de um crânio. Não se avalia uma população a partir de um crânio. No ano passado, montaram um conjunto de DNA que mostrou que o DNA dela é parecido com todos os outros índios da América, então a hipótese dele caiu. Ele reconheceu isso no ano passado. Acredito que esse novo achado não vai passar por esse problema. Quando você tem ossos humanos, não tem contestação
Claudia Plens, arqueóloga da Unifesp
Por que a descoberta pode mudar tanto o que se sabe até agora?
O estudo feito na missão Brasil-Itália pode afastar o entendimento anterior de que o primeiro hominídeo a deixar a África teria sido o Homo erectus -- espécie com postura mais ereta, muito parecida com a nossa, e com uma inteligência mais desenvolvida. Sua altura média era de 1,70 m.
Com as novas descobertas, um novo fluxo de deslocamento do gênero Homo pode ter sido identificado. Diante da datação dos artefatos encontrados, quem saiu da África primeiro foi o Homo habilis, uma espécie mais antiga, de cerca de 1,20 m de estatura, com menor inteligência (cérebro um pouquinho maior do que o de um chimpanzé) e que teria sido a primeira a fazer artefatos baseados em pedras lascadas.
Essa espécie surgiu na África por volta de 2,5 milhões de anos atrás e desenvolveu a habilidade de fabricar ferramentas pedra lascada, conforme indicaram descobertas arqueológicas no sítio da Garganta de Olduvai, na Tanzânia. As ferramentas encontradas na Jordânia também pertencem a essa técnica Olduvaiense, o que sugere mais um indício da descoberta, segundo os pesquisadores.
Neves defende que a pesquisa traz a hipótese de que o Homo habilis seguiu em direção ao Cáucaso e muito tempo depois deu origem ao Homo erectus, que se espalhou para outras regiões e, inclusive, conseguiu voltar para a África.
Para o arqueólogo, esse fluxo migratório evolutivo pode ajudar a compreender e explicar um dos importantes dilemas da paleontologia dos últimos 20 anos: como explicar as diferenças entre os cinco crânios encontrados em Dmanisi e como classificá-los se eles não se encaixam necessariamente em um único grupo?
Levando em conta que foi uma outra espécie que chegou na região primeiro, esta talvez seria uma população de transição entre as duas espécies. "Alguns dos crânios são até mais parecidos com o Homo habilis do que com o Homo erectus", ressaltou. "Antes não havia nenhuma evidência de Homo habilis fora da África. Com a nossa descoberta fica muito mais fácil interpretar o que você tem aqui."
De acordo com o geólogo Astolfo Araújo, foram precisos equipamentos pesados e uma tecnologia bem elaborada para conseguir fazer as escavações no sítio arqueológico da Jordânia. "A equipe literalmente raspou centenas de metros de terra, cascalho. Raspando tudo com martelinhos e colher de pedreiro. Mas tivemos também que usar picareta e britadeira em alguns locais."
O Hobbit
Outro impacto significativo da descoberta, segundo os pesquisadores, é que ela ajudaria também a explicar outra questão complexa da paleoantropologia. É o caso conhecido como o Hobbit da Ilha de Flores, na Indonésia. Trata-se de um fóssil encontrado na região há cerca de dez anos atribuído ao Homo floresiensis.
Com base em sua datação, acredita-se que ele tenha entre 90 mil e 20 mil anos. Muito mais recente do que as espécies já abordadas até aqui.
A sua estatura de cerca de um metro (por isso, o apelido de Hobbit) é a grande questão. Alguns estudiosos dizem que o floresiensis seria uma sobrevivência tardia ao Homo erectus, que teria sofrido influência do "efeito ilha" (recursos limitados em relação ao continente) e, consequentemente, acabou diminuindo de estatura.
Considerando que o primeiro hominídeo a sair da África tenha sido mesmo o habilis, é um pouco mais fácil de imaginar que o hobbit seria resultado de um encolhimento de um gênero que já não era tão alto.
"Vamos ser destroçados com essa descoberta"
Mesmo animado com sua pesquisa, Neves afirma que a comunidade internacional talvez veja com ceticismo os resultados obtidos. Para ele, a questão envolve uma significativa quebra de paradigma de tudo o que se acreditou até agora. Ainda mais por envolver países que não possuem uma tradição forte de produção no campo da paleontologia mundial.
"Vamos ser destroçados. Haja vista o tempo que a gente demorou para publicar [a descoberta em uma revista científica]. A gente começou a construir o artigo em 2016 e já encontrou ceticismo", afirmou Neves.
Na ciência a gente trafega pelo mundo das incertezas. O máximo que você consegue é estreitar essas incertezas. Ciência é sempre uma aproximação
Professor Walter Neves
Já se antecipando às críticas, os pesquisadores optaram por usar três diferentes técnicas para encontrar a data aproximada das pedras que foram encontradas no sítio da Jordânia. Todos os dados convergem na mesma direção: de que as ferramentas encontradas possuem 2,4 milhões de anos, segundo a equipe.
Um dos métodos utilizados foi a observação de recorrência de forma nas pedras estudadas. Nesse processo, é verificado se existem padrões no formato dos artefatos. Os objetos que fogem dessa lógica já chamam a atenção e podem seguir para uma possível análise mais criteriosa.
"Se ali é um composto com eixos arredondados, tudo o que não for arredondado já pode ser uma prova de lascamento intencional (feito propositalmente pelo hominídeo)", explica o professor Fabio Parenti. Ou seja, que há indícios de que uma pedra sofreu uma ação feita pelo homem. De acordo com os pesquisadores, várias pedras encontradas fugiram do padrão e tinham indícios de lascamento.
O paleomagnetismo também foi usado na pesquisa. Ele analisa a idade da rocha com base em um estudo envolvendo o seu magnetismo. A análise de sedimentos foi outra técnica utilizada. Com ela, testes de amostras de diferentes camadas são feitos com o objetivo de medir o material mais antigo encontrado.